Contraste | Deutsche Welle
O programa “Contraste” aborda assuntos de política e direitos humanos, questões de desenvolvimento e meio ambiente.
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A Guiné-Bissau precisa "refazer a ponte com os países amigos”, diz Ramos-Horta
O representante do secretário-geral da ONU na Guiné-Bissau, José Ramos-Horta, ...
O representante do secretário-geral da ONU na Guiné-Bissau, José Ramos-Horta, conversou com a DW-África sobre o seu trabalho no processo de transição da Guiné-Bissau e os desafios do país depois das eleições. DW África: O que o senhor encontrou ao chegar na Guiné-Bissau? Ramos-Horta (R-H): Encontrei um povo desorientado, sem esperança e, mais uma vez, profundamente decepcionado com as elites política e militar. Encontrei uma comunidade internacional pessimista em relação ao futuro da Guiné-Bissau, decepcionada com a atitude dos militares de terem realizado mais um golpe. Havia fortes divergências entre os membros da comunidade internacional sobre o que fazer ou não fazer em relação ao país. [Praticamente] não havia diálogo. Quando havia, sentia-se muita tensão entre os vários parceiros da Guiné-Bissau. Sentia-me às vezes muito incomodado pela grande expectativa e euforia dos guineenses com a minha nomeação pra cá. DW África: Havia a idéia de que o senhor poderia resolver os problemas do país? R-H: Exatamente. Vem aí José Ramos-Horta, prêmio Nobel da Paz, ex-chefe de Estado, figura internacionalmente conhecida, levou a bom termo o processo de estabilização do seu país, etc. Logo, o mesmo sucesso pode se replicar rapidamente na Guiné-Bissau. DW África: O senhor pode fazer um paralelo entre os conflitos que havia no Timor-Leste e os que o senhor na Guiné-Bissau? R-H: Felizmente, em Timor-Leste nunca tivemos um golpe militar na nossa curta história. Apesar de que, em outras circunstâncias, em outros países, a crise política provocada pelos políticos no meu país, teria levado a um golpe. Aconteceu na Tailândia, aconteceu nas Filipinas e acontece na Guiné-Bissau. Felizmente, a nossa elite militar é muito diferente, é disciplinada. Mas foi necessário recorrer ao apoio militar internacional – ONU e países amigos – para controlar a situação de segurança em Dili. Conseguimos, via atividades policiais operacionais, controlar a violência nos bairros. Ao mesmo tempo, isto criou espaço para modernizar e reorganizar a nossa polícia e as nossas forças armadas. Com a Guiné-Bissau, há um paralelismo apenas no sentido de que é um país pobre, com muito desemprego, com, pelo menos, um passado de indisciplina na polícia e nas forças armadas que são muito mal pagas. Quando polícias ou militares são muito mal pagos, recorrem a algumas atividades menos formais e menos lícitas para obter dinheiro. São seres humanos. Daí surge alegações contra alguns elementos das forças armadas de estarem implicados no negócio do tráfico ilícito de drogas e outras atividades. DW África: O senhor propôs uma espécie de partilha de poder. Em quais moldes ela ocorreria depois das eleições? R-H: O governo cessante de transição já foi uma experiência [neste sentido]. Neste governo de transição, inaugurado em junho de 2013, constam todos os partidos políticos e personalidades independentes. É um ensaio que fizemos e mostrou que os guineenses pode fazê-lo. Não tem funcionado muito bem porque o primeiro-ministro [Rui de Barros], uma pessoa íntegra, não tem poder político. Ele sofria depressões por todo o lado. É uma pessoa independente, não fez parte do golpe. O mesmo aconteceu com o presidente [Serifo Nhamadjo] que não participou do golpe e foi chamado pela Comunidade Econômica dos Países da África Ocidental (CEDEAO) para ocupar o cargo. O saldo do governo de transição não é positivo na parte financeira, econômica e social, mas este governo não herdou um Estado que começou mal no dia 12 de abril de 2012. Começou [a ficar] mal quando o então primeiro-ministro deste país, Nino vieira - não contente com o cargo, querendo ser presidente - fez o primeiro golpe. Portanto, foi um trabalho duro para o governo de transição. Por outro lado, devo dizer que há vontade política, que eu saiba, de todos os líderes políticos e dos militares deste país de fazer uma verdadeira viragem. Eu estou convencido que haverá possibilidade de um governo de inclusão. Não necessariamente de coligação. O partido vencedor convidará pessoas que o primeiro-ministro eleito [Domingos Simões Pereira] entender que - pelas suas qualificações profissionais, integridade, autoridade moral e ética - possa contribuir para o governo. Seja ele pertencente a algum partido ou independente. Seria um governo de inclusão, não de coligação. Mas se ele preferir um governo de coligação, o fará. É necessário um esforço para que ninguém se sinta perdedor ou excluído do processo de reconstrução do país. DW África: O senhor acredita que existe algum papel a ser desempenhado pelos integrantes da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa para ajudar a Guiné-Bissau, que ainda não tenha sido feito? R-H: Timor-Leste é um país jovem, com 10 anos de independência. Quem teve um papel mais interveniente neste processo eleitoral aqui na Guiné-Bissau, sobretudo na primeira fase? A primeira fase é a do recenseamento e todos consideram que obteve êxito sem precedentes. Pela primeira vez na história, 95,6% dos potenciais eleitores foram registrados em tempo recorde – em menos de três meses. [O processo contou] com técnicos timorenses e, obviamente, centenas e centenas de voluntários guineenses. O processo foi financiado por Timor-Leste. Se o Timor-Leste, que é um país jovem, pequeno e relativamente pobre, pode marcar a sua presença e hoje ser aplaudido na Guiné-Bissau e em toda a região da África Ocidental, muito mais poderá ser o Brasil, Angola, Moçambique e Portugal. Eu creio que é necessário vontade política, mas também que os novos líderes da Guiné-Bissau façam tudo para recuperar a boa vontade de Portugal, Angola e Brasil. Porque estes países-irmãos estiveram aqui 40 anos. Portugal deve ter investido centenas de milhões de dólares neste país em Educação, Saúde e Ajuda Humanitária. Onde está o resultado? O Brasil também investiu imenso aqui. Angola veio com muita generosidade e solidariedade. É necessário que os novos primeiro-ministro e presidente façam tudo para refazer a ponte com Angola, assim como continuar a reforçar as relações com os países da região: Senegal, Nigéria e Gana. São países importantes para a Guiné-Bissau.
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Troika está a destruir ideais da Revolução portuguesa, afirma Manuel Alegre
O político português critica a austeridade imposta pelos mercados. Em ...
O político português critica a austeridade imposta pelos mercados. Em entrevista à DW África, Alegre recorda também a luta contra a guerra e o dia em que Amílcar Cabral lhe disse que lia Camões aos combatentes. Manuel Alegre nasceu e cresceu num tempo de ditadura. O dirigente histórico do Partido Socialista (PS) português nasceu em 1936, três anos depois do início do regime fascista do Estado Novo em Portugal. Alegre combateu na guerra colonial em Angola para depois não o acusarem de desertor, diz hoje. Mas o político garante que sempre lutou pela democracia e contra o colonialismo. Por isso, à semelhança de outras vozes críticas na altura, Manuel Alegre foi perseguido pelo regime ditatorial português. Um dos seus locais de exílio foi a Argélia, onde trabalhou para a rádio Voz da Liberdade, contra o fascismo. O caminho da oposição à ditadura fez com que Manuel Alegre se cruzasse com os grandes líderes dos movimentos de libertação das ex-colónias portuguesas: Amílcar Cabral, Agostinho Neto, Eduardo Mondlane, Samora Machel. DW África: Em 1962, foi mobilizado para a guerra em Angola. No país, liderou uma tentativa de revolta militar, segundo a sua biografia oficial. Que tentativa foi esta? Manuel Alegre (MA): Quando cheguei a Angola, havia uma situação muito tensa. Foi quando o governador, o general [Venâncio] Deslandes, fez uma crítica ao Governo por não concretizar a instalação em Angola de uma universidade, tal como tinha sido prometida pelo Adriano Moreira, ministro do Ultramar. E isso criou uma grande tensão, que era favorável, nessa altura, a uma certa conspiração. Eu estive envolvido numa conspiração que envolvia muita gente. Gente como eu, que tinha uma consciência política antifascista e anticolonialista, oficiais milicianos, que tinham participado na luta estudantil, em Coimbra, em Lisboa e em vários pontos e que me conheciam a mim, mas também oficiais do quadro, que estavam revoltados com aquela situação. Então, houve ali um esboço de conspiração para uma revolta militar, mas que foi abortada pela denúncia de um dos oficiais implicados. DW África: Esteve preso durante seis meses na sequência desta tentativa. É na prisão que ouve pela primeira vez a rádio Voz da Liberdade. MA: Isso é uma história mirabolante. Depois dos interrogatórios, uma noite eu estava na minha cela e ouvi, de facto, a Voz da Liberdade. Porque eu estava numa cela isolado, mas perto do gabinete onde ficavam os "pides", que ouviam várias rádios à noite. E ouvi "esta é a Voz da Liberdade, a emissora da Frente Patriótica". Nunca tinha ouvido falar naquilo. Pensei que era uma coisa nova e fiquei muito espantado. Depois, vim a saber, através das coisas que se sabem na prisão e de algumas visitas, que tinha havido um anúncio nos jornais e que aquela era a emissão da Frente Patriótica que tinha sido instalada em Argel, onde iria depois ter o general Humberto Delgado e onde, passado um ano, eu também iria ter. DW África: Que papel teve a rádio no processo de descolonização? MA: Não, a rádio desempenhou sobretudo um papel na luta contra o fascismo e contra a ditadura, porque era uma voz livre portuguesa. Não havia censura. Mas também dávamos notícias sobre a guerra. Talvez a coisa mais importante tenha sido uma entrevista que eu fiz ao Amílcar Cabral, que falou de uma maneira inesperada para muita gente, porque ele assumiu uma parte da História portuguesa. Assumiu o poeta nacional, Camões. Disse que ele próprio lia poemas de Camões aos combatentes, que celebravam alguns feriados portugueses, como o 5 de Outubro. Enfim, disse coisas que mesmo as pessoas da esquerda portuguesa, nessa altura, tinham um certa inibição em dizer, uma vez que o fascismo tinha assumido e subvertido alguns desses valores nacionais. E ele, desinibidamente, falou de Camões, dos Lusíadas. E disse esta coisa extraordinária: "Não é mentira, não. Os portugueses deram realmente novos mundos ao mundo. Aproximaram povos e continentes. E o Salazar é que está a desfazer tudo isso com esta guerra." DW África: Também conheceu Agostinho Neto, Samora Machel... MA: Sim, conheci-os todos. Samora Machel, Eduardo Mondlane... Aliás, é um momento triste, porque eu almocei com o Eduardo Mondlane no Cairo na antevéspera de ele ser assassinado. Almocei com ele, ele partiu para Dar es Salaam, chegou, rebentou-lhe a bomba e ele morreu. DW África: Lembra-se de algum episódio que o tenha marcado desses encontros? MA: Todos eles eram diferentes. O Amílcar Cabral era uma personagem extraordinária. Costumo dizer que tinha uma "luz". Ouvi-o falar várias vezes em sessões internacionais e ele marcava, sendo um líder de um movimento de libertação de um pequeno país. Tinha realmente um dom especial. O Agostinho Neto era uma figura muito interessante, um poeta, mas um homem mais reservado. O Samora Machel era um homem exuberante, que não tinha formação universitária, vinha da guerra, mas percebia-se que tinha uma inteligência intuitiva raríssima. O Eduardo Mondlane era um homem que tinha essa experiência das universidades americanas. Enfim, cada um deles tinha a sua personalidade. Lembro-me de um episódio que não vou esquecer. [Em Argel,] recebíamos desertores que vinham da Guiné. Muitos deles não vinham por razões políticas, vinham por outras razões: ou porque estavam para ser punidos, porque tinham roubado ou por qualquer outra razão. E um dia recebemos lá uns que não eram assim de grande confiança. E soubemos através de outros desertores que eles, quando estavam em Conacri, tinham pensado em cortar a cabeça ao Amílcar Cabral e voltar para Bissau. Eu estava com o Piteira Santos e contámos isto ao Amílcar Cabral. Ele olhou para mim, com os olhos muito abertos, e disse: "Se um dia for morto, serei morto por um homem do meu povo, do meu partido e, provavelmente, um fundador." Nunca mais esqueci e foi verdade. DW África: Sente-se, de alguma forma, traído por aqueles que defendeu na altura da rádio, quando eles embarcaram na direção do monopartidarismo? No caso de Agostinho Neto, Samora Machel… MA: Nós lutávamos pela liberdade do povo português, contra a ditadura. E lutávamos pelo fim da guerra e pelo reconhecimento do direito à autodeterminação e à independência. Não nos competia a nós dizermos o que eles deviam fazer, nem a eles vir dizer-nos o que nós devíamos fazer. Eram coisas diferentes. Lembro-me de uma vez ter tido uma pequena questão com o Amílcar Cabral. Ele deu uma conferência de imprensa dizendo: "Estou disposto a ajudar o Dr. Marcello Caetano a ser o de Gaulle português". Eu fiquei um pouco irritado com aquilo e ele explicou-me: "Não, eu estou a lutar pela independência do meu país. O nosso problema não é o vosso, que é um problema de regime." E assim era, realmente. A nossa luta era para derrubar a ditadura, instaurar a democracia e pôr fim à guerra, porque considerávamos que a condição fundamental de libertação do povo português era o reconhecimento do direito dos povos colonizados à autodeterminação e independência. Esse processo era quase inevitável, porque era o período da Guerra Fria, da influência dos dois blocos. E aqui, quando fizemos a nossa independência, também não havia pluralismo. O Afonso Henriques não fez pluralismo partidário. Esses processos de edificação de um país, de construção de uma nação, passam normalmente por uma personalidade forte e por um regime único. É quase inevitável. DW África: Que balanço faz da descolonização? MA: Este processo foi trágico para o povo português e para os povos africanos, porque a guerra durou muito tempo. Se nós tivéssemos naquela altura telemóveis, computadores, os meios eletrónicos que há hoje, a guerra não tinha durado mais do que três ou seis meses. Nem tanto. Mas não havia. A guerra durou muitos anos. Não houve "Dien Bien Phu" em África, quer dizer, não houve uma derrota militar estrondosa das forças portuguesas. A situação militar era muito grave na Guiné, não era em Angola, em Moçambique era complicada. Mas foi sobretudo a consciência da parte do Movimento das Forças Armadas (MFA) de que o regime era incapaz de oferecer uma solução política e que aquela situação tinha chegado ao fim. E que, para haver uma solução política, era preciso resolver o problema português e derrubar a ditadura. Evidentemente que tudo teria sido mais simples se em Portugal houvesse democracia ou se, por exemplo, o Marcello Caetano tivesse feito uma certa abertura do regime para negociar a paz. Mas isso não aconteceu. E, portanto, aquela descolonização foi o que foi, porque dificilmente se calhar teria sido de outra maneira. DW África: Olhando para trás, o 25 de Abril valeu a pena? MA: Claro que o 25 de Abril valeu a pena. Foi o momento mais alto das nossas vidas e da nossa geração. Pusemos fim a um regime de ditadura que durou quase meio século, que negou a liberdade aos portugueses e que fez um campo de concentração, o Tarrafal. Fez a censura, abafou a vida dos portugueses, obrigou muita gente a ir para fora do país, expulsou da universidade as grandes figuras portuguesas, asfixiou economicamente, socialmente e culturalmente o país. Viveu pelo medo, pela asfixia. Não fazia aquelas repressões sangrentas como na América Latina nem como o Franco depois da guerra civil. Mas quando era preciso matar, matava. Matou o general Humberto Delgado e outros opositores. E, sobretudo, fez de Portugal um país muito atrasado. DW África: Quando olha para o Portugal de hoje, os ideais da Revolução estão por concretizar? MA: A revolução tinha três objetivos: descolonizar, democratizar e desenvolver. A revolução democrática, a descolonização e o desenvolvimento foram feitos, tal como a Constituição da República, que é muito progressista e que consagrou os direitos sociais inseparáveis dos direitos políticos. A segurança social pública, o serviço nacional de saúde, o direito à saúde, o direito à habitação, a escola pública... Coisas que nunca tinha havido em Portugal e que criaram um progresso imenso no país. Agora, tudo isso está a ser destruído por esta situação de resgate em que nos encontramos, pelas condições duríssimas que nos estão a ser impostas pela chamada "troika" e também pelo facto deste Governo se estar a aproveitar dessa circunstância para realizar o seu próprio programa ideológico. Isto tem a ver um pouco com a situação que se vive hoje na Europa, que nada tem a ver com o projeto europeu, como um projeto de paz e prosperidade partilhada entre nações iguais e soberanas. Isso não existe. Temos hoje essa entidade mítica chamada "mercados", que se sobrepõem aos próprios Estados democráticos e às instituições democráticas do país. E temos depois o papel da Alemanha, que é desagradável falar, mas de que eu falo. A Alemanha tem hoje um papel fortíssimo na Europa e, ao impor esta política de austeridade, está a criar uma situação explosiva no continente. Ou há uma viragem, ou, mais tarde ou mais cedo, a Alemanha vai pagar o preço desta política.
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As mulheres da Revolução dos Cravos
Foram militares portugueses, homens, que pensaram e executaram o golpe ...
Foram militares portugueses, homens, que pensaram e executaram o golpe de Estado de 1974 para acabar com a guerra colonial e com uma ditadura de quase meio século. Mas onde estavam as mulheres na revolução? Maria Teresa Horta lembra-se bem daquela noite terrível. A escritora portuguesa acabara de sair de casa. Um carro acendeu as luzes. Ela começou a andar, à procura de um táxi, mas deteve-se. "Vejo que o carro avança, tenta atropelar-me, eu fujo para dentro do passeio, ele pára mais adiante." Dois homens saíram do carro. "Correram para mim, deitaram-me ao chão. E começaram a bater com a minha cabeça no chão e a dizer uma frase espantosa que era 'isto é para tu aprenderes a não escreveres como escreves'." Um passante foi em socorro de Maria Teresa Horta. Levou-a ao hospital, porque ela estava a sangrar. Os agressores fugiram. Maria Teresa Horta acabara de escrever o livro de poesia "Minha Senhora de Mim", que era, nas palavras da autora, "uma escrita de erotismo, uma escrita dos sentidos, uma escrita que ainda não se tinha visto em Portugal. Que era uma mulher a falar do seu corpo, a falar do corpo do homem." Eram os inícios dos anos setenta. O ditador fascista português António Salazar já morrera, mas o seu sucessor, Marcello Caetano, deu seguimento à linha conservadora do regime. O lugar da mulher era em casa, segundo a ideologia vigente na altura. À mulher eram atribuídas as tarefas domésticas e a função de cuidar dos filhos. Nas famílias mais pobres, as mulheres também trabalhavam, mas tinham direitos limitados. Na altura, se uma mulher quisesse trabalhar no comércio, abrir uma conta bancária ou sair de Portugal tinha de pedir autorização ao marido. Maria Teresa Horta nunca se conformou com essas coisas. Aos 13 anos já colocava questões incómodas em casa. "Comecei a achar estranho que perguntassem a todos os meninos que estavam ao pé de mim 'o que queres fazer quando fores grande?' E a nós, nada!", critica. O feminismo é algo que lhe deve estar nos genes, graceja. Ainda criança, costumava acompanhar a avó paterna a reuniões de feministas. "Senhoras de chapelinho, que tomavam chá e conversavam umas com as outras", recorda Maria Teresa Horta. Uma dessas senhoras era a escritora Maria Lamas, que foi presa várias vezes pelo regime ditatorial e forçada ao exílio. Como ela, outras mulheres foram presas por subversão. A ceifeira Catarina Eufémia, por exemplo, foi inclusive assassinada num protesto contra o regime de Salazar. Sem liberdade nada feito Antes de lutar pelos direitos das mulheres, era preciso lutar contra a ditadura moralista, diz Maria Teresa Horta. “Não se pode lutar pelo feminismo sem se lutar pela liberdade”, sublinha a escritora. "Não éramos as feministas americanas, que tinham uma Constituição e uma democracia. Não, nós não podíamos ser nada em Portugal. As mulheres não podiam ser coisa nenhuma. Não tinham direito a nada." Por isso, até à revolução portuguesa, a luta feminista foi ofuscada pela luta para derrubar a ditadura, explica a historiadora Irene Pimentel. "As mulheres da oposição ao regime lutavam sobretudo contra o regime, não de forma autónoma. Muitas delas lutavam no seio do Partido Comunista. Outras por questões democráticas, de eleições." Mesmo dentro dos movimentos de oposição ao regime fascista, a mulher era muitas vezes relegada para o lugar que já ocupava na sociedade machista, refere a historiadora. "Por exemplo, as mulheres do Partido Comunista Português (PCP) normalmente tratavam das casas dos funcionários clandestinos e tinham as mesmas tarefas no lar. Tratavam da cozinha, etc. Muitas até eram analfabetas", recorda Irene Pimentel. As mulheres eram tratadas como "companheiras na sombra". "Retaguarda familiar" Maria Barroso recebe-nos no escritório da Pro Dignitate, uma fundação de direitos humanos que ajudou a criar em 1994 e a que preside até hoje. Em cima de uma grande secretária estão vários papéis e livros. Mas há um que se destaca no topo: a biografia do marido, Mário Soares. No livro, Maria Barroso é co-protagonista. Soares foi um dos principais opositores à ditadura portuguesa, Maria Barroso garantia a "retaguarda familiar", escreveu o biógrafo Joaquim Vieira. As constantes viagens, para contactos políticos, e as deportações de Soares obrigaram Maria Barroso a ficar em casa a cuidar da educação dos dois filhos e do sustento da família, o Colégio Moderno, em Lisboa. Maria Barroso viveu vários momentos de aflição ao lado do marido. Como no dia em que a polícia política portuguesa, a PIDE, perseguiu o casal a caminho do sul de Portugal. "Eu até a certa altura disse ao meu marido: 'Tenho a impressão que vinha polícia atrás de nós.' E ele disse: 'Lá estás tu com a mania da polícia.' E quando chegámos ao hotel onde nos instalámos, o homem disse-nos: 'cuidado, acabaram de se instalar junto do vosso quarto gente da polícia política.' E eu até fiquei assustada e fiz uma coisa que parece uma garotice, mas peguei na escova do cabelo do meu marido (risos) que tinha um cabo e pus debaixo do travesseiro e disse: 'Se for preciso lutar...' Mas depois eles ali não fizeram nada", conta. Numa outra vez, Maria Barroso recebeu uma encomenda com uma bala. Lá dentro havia também uma mensagem que dizia "das dez que esperam o doutor Mário Soares", segundo a biografia do político. Revolução libertou mulheres Agora, olhando para trás, todas essas dificuldades valeram a pena, afirma Maria Barroso. Porque aconteceu o 25 de Abril de 1974. Nesse dia, ela estava em Bona, na Alemanha, porque Mário Soares tinha encontro marcado com o então chanceler Willy Brandt. "Estávamos no hotel e era manhã cedo quando recebi o telefonema a dizer-me que tinha havido uma revolução em Portugal. De maneira que eu fiquei muito excitada, acordei o meu marido e disse-lhe: 'Tens que ouvir isto!' E passei-lhe o telefone. Tinha havido, de facto, uma revolução em Portugal", recorda Maria Barroso. Nas ruas de Lisboa, os capitães de Abril derrubaram do poder Marcello Caetano. Otelo Saraiva de Carvalho coordenou as operações, as tropas de Salgueiro Maia cercaram o Quartel do Carmo, onde Caetano se refugiou, e foi o general António Spínola que recebeu o poder das mãos do Governo. Entretanto, uma mulher, Celeste Caeiro, repartiu cravos vermelhos pelos militares, que os colocaram nos canos das espingardas. A revolução foi uma óptima notícia para a luta pelos direitos das mulheres, diz a escritora Maria Teresa Horta. "Eu costumo dizer que toda a gente ganhou com o 25 de Abril em Portugal. Mas as mulheres particularmente. Porque as mulheres de repente descobriram que podiam ir para a rua, descobriram que podiam dizer não, não quero isto." A revolução salvou Maria Teresa Horta da prisão. Dois anos antes, ela escrevera as "Novas Cartas Portuguesas" com Maria Velho da Costa e Maria Isabel Barreno. Mas o livro foi proibido. As autoridades da ditadura portuguesa acusaram as "três Marias" de pornografia, obscenidade e abuso da liberdade de imprensa. "Nós ousávamos. Nós, mulheres, ousávamos falar da sexualidade de uma forma clara. E mais ainda. Nós falávamos da guerra de África. Isso era uma afronta dupla", afirma. A escritora recorda-se bem da primeira sessão do julgamento, quando "o promotor público pega num dos textos das Novas Cartas e leu: ‘Ai, os portugueses são tão bons na arena e tão maus na cama.' E pega no livro e deita o livro pelo ar. Uma coisa dramática. Desatou tudo a rir. Até o juiz pôs a mão à frente da cara, porque desatou a rir. Aquilo era uma coisa ridícula. Ele era gordo, pequenino, e então achava que dizer que os homens portugueses eram maus na cama era uma afronta à sua masculinidade." O julgamento prolongou-se durante meses. Maria Teresa Horta conta que o mais certo era ela e as suas colegas serem condenadas. Mas, entretanto, justamente antes da última sessão do julgamento, deu-se a revolução. Tudo mudou. As "três Marias" foram absolvidas. O juiz chegou mesmo a convidá-las para jantar. "Não só o juiz disse que nós éramos uns génios e que aquele era um livro fabuloso, como até deu um jantar, uma quantidade de gente, sim senhora, em casa dele, um espavento. E porquê? Porque já estávamos no 25 de Abril", afirma a escritora. Depois da revolução, rasgaram-se leis como a que obrigava as mulheres a pedir autorização aos maridos para sair do país. E não só. Segundo a historiadora Irene Pimentel, antes da revolução "não era permitido a uma mulher ser juíza ou diplomata – por exemplo, embaixadora. Era proibido. A seguir ao 25 de Abril, se formos ver, as juízas e as magistradas estão em maioria." Mas nem tudo foram rosas para as mulheres. No período quente, depois da revolução, Maria Teresa Horta ajudou a organizar uma manifestação de luta pelos direitos das mulheres. Aí, previa-se a queima de símbolos da opressão feminina: vassouras, grinaldas de noiva… Porém, centenas de homens juntaram-se em redor das mulheres e começaram a bater-lhes. "Eram murros, despiam as mulheres, tentavam violá-las", conta a escritora. Reinava ainda a mentalidade machista, admite Maria Teresa Horta. Ainda hoje, as chamadas "companheiras na sombra" só lentamente saem para o sol. "Claro que na Constituição é proibido trabalho igual e salário desigual. Mas todas as centrais sindicais continuam a permitir e a fazer contratos de trabalho com trabalho igual e salário desigual", critica a escritora. "São eles que mandam sempre. Há uma maioria esmagadora de empresas que continua a ter sobretudo os homens à cabeça. Você olha para a Assembleia da República e aquilo é um deserto de mulheres".
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Otelo, o português que Samora Machel convidou para ingressar na FRELIMO
Depois de ajudar a fazer a revolução em Portugal, Otelo ...
Depois de ajudar a fazer a revolução em Portugal, Otelo bateu-se pela independência dos países africanos de língua portuguesa. Samora Machel disse-lhe inclusive em brincadeira para integrar o movimento. "Óscar" - foi este o nome de código do português Otelo Saraiva de Carvalho no 25 de Abril de 1974. Otelo, que nasceu em Lourenço Marques (hoje Maputo), foi o principal comandante do golpe militar e tinha a seus ombros o peso de derrubar uma ditadura que durava há quase meio século em Portugal. Mas não estava sozinho, muitos militares acompanhavam-no. Sobretudo porque queriam o fim da guerra colonial. Ainda assim, quando o regime caiu colocou-se a questão: o que fazer com as colónias? O "Movimento das Forças Armadas" (MFA), que levou a cabo o golpe e de que Otelo fazia parte, defendia a concessão imediata da independência. Até porque, na Guiné-Bissau, o Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) já declarara a independência unilateralmente. Mas havia quem tivesse um plano diferente – nomeadamente António de Spínola, o "general do monóculo", que os militares revoltosos escolheram para liderar o país a seguir à revolução do 25 de Abril. DW África: Como viveu a noite do 25 de Abril? Otelo Saraiva de Carvalho (OSC): Entrei no Posto de Comando ainda não eram 22h00 de 24 de abril e saí de lá às 13h30 de 26. Nunca me deitei, comi uma refeição, uma sandes com cerveja e tal. Nunca saí do Posto de Comando porque estava numa situação de ansiedade e stress para que tudo corresse bem. Eu tinha uma responsabilidade enorme naquilo. Era uma responsabilidade muito pesada e eu sentia isso. Porque ali no Posto de Comando só eu é que tinha um conhecimento profundo da ordem de operações que tinha feito. DW África: Quais eram as prioridades do 25 de Abril? OSC: Em termos ideológicos, a prioridade que atribuímos era, de facto, a recuperação da liberdade, que era fundamental num país que já vivia, nessa altura, com 40 anos de repressão em cima. Primeiro uma ditadura militar, de seis anos, e depois uma ditadura de características fascistas durante trinta e tal anos. Depois, num país de um cinzentismo tramado, com uma indústria extremamente limitada, de forma geral, e também num país pobre, muito dedicado à agricultura, com uma taxa de analfabetismo enormíssima, outro objetivo fundamental era elevar rapidamente o nível de desenvolvimento do país, por um lado, mas também o nível cultural, económico… Enfim, o bem-estar de todo um povo que vivia sacrificado há muito tempo. Na altura em que fizemos o 25 de Abril, 40% do Orçamento de Estado eram destinados à manutenção da guerra colonial, às Forças Armadas. Eram cerca de duzentos e tal mil homens, jovens, na força de trabalho, que eram deslocados e ficavam ausentes de Portugal durante dois anos. Tudo isso era um prejuízo enormíssimo para um país que não conseguia sair disto, empenhado numa guerra que não conseguia aguentar, porque não tinha gente para aquilo, não tinha armamento, não tinha apoio internacional nenhum… DW África: A questão da autodeterminação das ex-colónias portuguesas era um ponto assente para o Movimento dos Capitães, mas um ponto emendado pelo general António de Spínola, que se tornou o primeiro Presidente da República Portuguesa após a ditadura. Depois do golpe militar, quando a Junta de Salvação Nacional se apresenta ao país, na televisão pública, a RTP, Spínola diz que a Junta assumia como compromisso: "Garantir a sobrevivência da Nação, como Pátria soberana no seu todo pluricontinental". Como é que o Movimento das Forças Armadas conseguiu, ainda assim, impor a sua vontade no que diz respeito à autodeterminação das colónias? OSC: Eu julgo que foi decisiva aí uma intervenção que fiz quando, não sei porquê, o Spínola invocou a pressão dos camaradas para que a delegação portuguesa me incluísse nas chamadas negociações preliminares com a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), que tiveram lugar em Lusaca [Zâmbia], em 6 de junho de 1974. Nas vésperas, fui chamado ao Palácio de Belém e o Spínola mandou-me entrar no gabinete para me dizer: "Mandei-o cá chamar para que você se prepare para amanhã seguir com o Dr. Mário Soares e um outro elemento do Ministério dos Negócios Estrangeiros para Lusaca, para as conversações preliminares com a FRELIMO." "Então e qual é a minha missão?" – perguntei. E ele diz-me: "Você vai na delegação para vigiar o Mário Soares, porque eu não tenho confiança nenhuma nele." Inquiri: "E qual é a missão do Dr. Mário Soares, como ministro dos Negócios Estrangeiros?" Responde-me: "Eu disse-lhe que ele pode andar ali em conversações e argumentos, mas para não vir de lá sem o cessar-fogo. O cessar-fogo é que é fundamental. Depois do cessar-fogo, a gente conversa." Quando se abrem as conversações, Mário Soares diz ao que vai: "Eu trago aqui a missão de cessar-fogo para depois podermos encetar negociações." Samora Machel corta aquilo e diz: "Negativo, nós não fazemos cessar-fogo enquanto não se verificarem algumas condições que nós impomos. Há dez anos que estamos em luta para alcançar a independência e queremos, primeiro, que vocês reconheçam que nós, FRELIMO, somos os representantes do povo moçambicano em armas. Que, sim senhor, poderá haver um período de transição na passagem de poder, haverá com certeza. Mas que o poder é passado do poder colonial português para nós, FRELIMO. E queremos a independência. Não queremos nenhum outro sistema. Nós sabemos depois o que fazer para o Governo do país." E o Mário Soares contra-argumentou. A certa altura aquilo estava num impasse. Até que eu pensei: "A minha missão é verificar se o Mário Soares está a cumprir a missão que lhe foi dada pelo general Spínola. Ele está a cumprir. Portanto, vou intervir." E disse: "Estou aqui a representar o Movimento das Forças Armadas (MFA) e, nesse sentido, digo que, na nossa perspetiva, todos os povos têm o direito à autodeterminação, com todas as consequências que isso possa ter, inclusive a independência. E nesse sentido, a FRELIMO, representada por Samora Machel e pelos camaradas que aqui estão, tem inteira razão. Porque, enquanto as nossas forças estão desmoralizadas no terreno e ansiosas que acabe uma guerra que já não tem significado para nós, para eles continua a ter muito. Para eles, significa a possibilidade de alcançar a independência por que anseiam há séculos. Portanto, dou-lhes inteira razão." Epá, o Mário Soares disse: "Peço desculpa, tenho de interromper. Senhor major, temos de falar ali ao lado." E o Samora diz-me: "Ó Otelo, anda para aqui, tu és moçambicano, anda para aqui." Eu disse: "Sou moçambicano, mas tenho nacionalidade portuguesa e, portanto, estou aqui deste lado. Eu estou é do vosso lado nessa perspetiva, que é, de facto, a nossa do MFA." Bem, o Mário Soares levou-me para um canto: "O senhor major colocou-me numa situação aqui tramada. É que tenho ordens do senhor general Spínola…" Eu disse: "Eu sei, mas eu não concordo com o general Spínola." Disse o Mário Soares: "Então, quando chegarmos a Lisboa sem o resultado do cessar-fogo, o senhor assume essa responsabilidade." Eu respondi: "Totalmente, não tenha problema nenhum." DW África: Em julho de 1975 foi a Cuba. Encontrou-se com Fidel Castro. Hoje sabe-se que o líder cubano lhe perguntou se devia enviar tropas para Angola para apoiar o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA). Ainda se lembra da ocasião em que Fidel Castro falou consigo? OSC: Eu almocei com o Fidel e o Raúl Castro num à parte de um restaurante que era o "Los Canaviales", perto de Havana. E o Fidel disse-me: "Pedi-te para almoçarmos aqui mais isoladamente porque tenho um problema para te apresentar. Recebi há uma semana uma delegação angolana do MPLA que me trouxe uma carta dramática do Agostinho Neto. É que estão tropas sul-africanas em apoio da UNITA [União Nacional para a Independência Total de Angola] a entrar em Angola pelo rio Kunene, pela fronteira sul com a Namíbia. Por outro lado, forças do Mobutu [Sese Seko], do Congo, em apoio à FNlA [Frente Nacional de Libertação de Angola], estão a entrar pelo norte e o MPLA está numa situação enfraquecida. Está em Luanda, mas vai ter grande dificuldade em resistir a este cerco. E pediu-me apoio militar. Eu disse-lhe que ia pensar no assunto. Não tomei nenhuma decisão. Vocês vão mandar tropas para lá, vão manter lá forças militares para poderem apoiar o MPLA?" Eu disse-lhe: "Nem penses nisso. Numa situação como esta, com três movimentos de libertação, a UNITA, o FNLA e o MPLA no terreno, o Governo português atual, da revolução, não vai tomar posição por nenhum dos partidos. Se toma uma posição pelo MPLA, fica contra a UNITA e o FNLA. Portanto, é uma situação extremamente difícil." Perguntou o Fidel: "Então o que achas que faça?" Disse: "Se estivesse no teu lugar, faria o seguinte: começava já a mandar tropas cubanas, se possível negras, para Angola. Desembarcam ali em Luanda e ficam já em apoio do MPLA. E, portanto, essa é a possibilidade que o MPLA tem de sobreviver." DW África: Portugal saiu à pressa das colónias? OSC: Não. Ainda houve um Governo de transição, ficámos lá ainda um ano e tal. Quem teve medo das consequências da independência saiu de Moçambique e Angola. Houve dramas tramados na descolonização. Dramas terríveis. Houve gente que perdeu tudo o que tinha, veio-se embora. Muitos deles em pânico. DW África: E se o 25 de Abril tivesse corrido mal? OSC: Eu despedi-me da minha mulher na noite de 23 de abril, em que já fui dormir à Pontinha clandestinamente, porque não era a minha unidade. E quando me despedi da minha mulher, ela fez-me essa pergunta. E eu disse-lhe: sexta-feira estou cá para almoçar. 25 de abril era uma quinta-feira. "E se tudo correr mal e vocês perderem?" Disse-lhe: "Não, não perdemos de certeza. Mas se por acaso, por um azar qualquer monstro, isso acontecer, olha, nunca mais nos vemos." Porque eu era preso e iria morrer ao campo de concentração do Tarrafal, em Cabo Verde. DW África: Em Portugal, foi conotado com os setores mais à esquerda do Movimento das Forças Armadas (MFA). Porque é que acha que esses setores não se conseguiram impor? OSC: Não sei, pá. Depois de 48 anos de fascismo, foi extremamente difícil entrar naquilo que era a ideologia da União Soviética – devido a um propaganda de meio século. Esse medo do comunismo persistiu sempre. Durante o PREC [Processo Revolucionário Em Curso, após o 25 de Abril, marcado pela agitação social e política] isso verificava-se. Era um tema recorrentemente utilizado pelos padres das aldeias. Os comandos utilizavam boina vermelha e uma vez mandei o Jaime Neves dirigir os comandos numa operação chamada "Nortada", em Trás-os-Montes, de apoio às equipas de engenharia militar que estavam a abrir caminhos e estradas novas. E o Jaime Neves veio de lá estarrecido e disse-me: "Não imaginas o que é aquilo, eu ia a aldeias e as portas fechavam-se todas." Escondiam os crucifixos nas arcas. Havia um terror tremendo dos comunistas. Houve sempre dificuldade de penetração da esquerda na sociedade civil. DW África: O 25 de Abril valeu a pena, olhando para o Portugal de hoje e para a situação de crise económica que o país atravessa hoje em dia? OSC: Se me pergunta "olhando para o Portugal de hoje" é difícil dizer categoricamente que tenha valido a pena. Agora, sem dúvida nenhuma que, não pensando na situação de crise grave que estamos a atravessar, valeu imensamente a pena. Sou um orgulhoso protagonista do 25 de Abril.
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Otelo, o militar que planeou o 25 de Abril
Os portugueses tratam-no pelo primeiro nome, Otelo. O ex-militar português ...
Os portugueses tratam-no pelo primeiro nome, Otelo. O ex-militar português planeou e comandou as operações do golpe de Estado de 25 de Abril de 1974. Durante três semanas, Otelo escreveu em 26 folhas A4 o plano de operações do golpe militar que derrubou quase meio século de ditadura fascista em Portugal. Otelo Saraiva de Carvalho fez a revolução e, depois, quis voltar à vida de professor na Academia Militar portuguesa. Mas não o deixaram. Para muitos, Otelo tornara-se num herói, imprescindível para levar a cabo a transição da ditadura para a democracia – o então major tinha 37 anos. Antes da revolução, o ex-militar combateu na guerra colonial, que a ditadura portuguesa manteve teimosamente durante 13 anos. Foi a guerra que motivou Otelo a lutar contra o regime – porque, segundo diz, era urgente chegar a uma solução política e parar com o derramamento de sangue. DW África: Esteve na Guiné-Bissau entre 1970 e 1973. Combateu contrariado? Otelo Saraiva de Carvalho (OSC): Na Guiné-Bissau já combati contrariado. Mas na primeira comissão que fiz em Angola, entre 1961 e 1963, quando tinha acabado de ser promovido a alferes (a primeira patente de um oficial), ia animado de boas intenções. Ia não só para me experimentar a mim próprio enquanto comandante de 30 ou 40 homens em situações de combate (era uma valorização pessoal que precisava de assumir), mas também para defender território que tinha sido conquistado havia mais de quatro séculos pelos portugueses. No entanto, ao longo das três comissões que fiz, foi-se desvanecendo esta perspetiva de estar ali a lutar por alguma coisa que valesse a pena. DW África: Lembra-se do momento em que disse "basta"? OSC: Foi exatamente aquilo que deu origem ao Movimento dos Capitães. Estávamos cansados de uma guerra que não fazia já sentido. No caminho da História, era impossível manter indefinidamente um império colonial que não tínhamos capacidade de aguentar. Quer pelas forças que nós tínhamos, quer pela maior capacidade das forças dos movimentos de libertação, que demonstravam cada vez mais ter melhor armamento, melhor capacidade de instrução, melhores quadros que se iam formando no exterior – na China, na União Soviética… Isso começava a dar-nos uma sensação de impotência total e também, política e ideologicamente, a perspetiva era de que a guerra tinha de ter uma solução política. Portanto, essa falta de motivação já existia. E então surgem os famosos decretos de julho e agosto de 1973, que nos demonstram que o Governo não só não está empenhado em encontrar uma solução política, mas, pelo contrário, estava empenhado em manter a guerra e continuá-la. Esses decretos vão abrir a possibilidade a homens que já tinham feito uma comissão como milicianos na guerra colonial e agora eram funcionários públicos, bancários, empregados de empresas, de poderem ingressar no quadro permanente com a antiguidade de tenente, com que tinham saído do serviço militar. E aí, pá, foi o fim! DW África: Como é que o movimento conseguiu escapar ao "radar" da polícia política portuguesa, a PIDE/DGS? OSC: Talvez devido a um receio que [o Presidente do Conselho de Ministros] Marcello Caetano tivesse de qualquer ação policial exercida sobre uma instituição que preservava a sua fachada de "ao serviço da Pátria". No início, até havia faltas de segurança em reuniões clandestinas por parte do Movimento dos Capitães. A malta reunia-se e discutia assuntos sempre com esse à vontade que resulta da força da instituição militar na sociedade civil. […] Esse receio persistiu e vai levar a que Marcello Caetano revogue os decretos que tinham dado origem ao Movimento dos Capitães. Portanto, uma vitória considerável. Só a 15 março de 1974, com a exoneração dos generais António de Spínola e Costa Gomes, é que a PIDE começa a estar no terreno. Marcello Caetano vai ficar à espera de uma reação dos capitães que estavam escorados pelos dois generais. A perspetiva é que essa reação acontece com o 16 de março. E aí a PIDE já está, de facto, no terreno. DW África: Esteve envolvido nessa tentativa de golpe. O golpe falhou… OSC: Não era bem um golpe. Foi uma aventura descabelada. A iniciativa não foi minha. Eu vi-me envolvido naquela situação, que era para ser desencadeada na noite de 13 para 14 de março. O objetivo era impedir a "Brigada do Reumático", que iria ter lugar a 14 de março – a [cerimónia de] vassalagem de generais dos três ramos das Forças Armadas na Assembleia Nacional perante Marcello Caetano, a jurar-lhe fidelidade e que as Forças Armadas estavam com a política colonial seguida pelo Governo, o que já não era verdade. Eles já não representavam a instituição militar, de facto. Eu cancelei a ação. Mas uma unidade, não tendo aceitado a minha decisão de cancelamento daquela ação que me parecia perfeitamente aventureira, reincidiu isoladamente. […] O 16 de março foi um sábado. As unidades ficam vazias, porque o pessoal vai de fim de semana e ficam só os faxinas na cozinha ou os sentinelas na Porta de Armas. E, por isso, o resultado daquilo foi uma aventura total. Eu fui arrastado naquilo - não fui preso pela PIDE por trinta segundos, o que foi uma sorte monstra porque, a partir daí, tive oportunidade de agarrar naquilo que ainda sobrava da Comissão Coordenadora Executiva [do movimento revolucionário] e fazer uma reunião definitiva e última, onde expus o que se tinha passado no 16 de março. Disse: "Assumo a responsabilidade de elaborar uma ordem de operações com cabeça, tronco e membros para fazer uma operação militar que vamos desencadear na última semana de abril." DW África: Ou seja, aprendeu a lição. OSC: O 16 de março foi bom. Depois, muita gente considerou que tinha sido um balão de ensaio provocado para ver quais eram as forças governamentais no terreno contra as quais teríamos que lutar. E foi isso que acabou por ser. DW África: Como é que planeou a operação do 25 de Abril? OSC: Foi um trabalho absolutamente solitário. Saía, recolhia elementos. Corri riscos, pá…O Vasco Lourenço e o Vítor Alves chamavam-lhe a "loucura do Otelo". Eu, por exemplo, não sabia bem o que era a Guarda Nacional Republicana (GNR). Mas lembrei-me de um primo meu, major, que era adjunto de operações na Repartição de Operações do Comando-Geral da GNR. E eu, que já não o via há anos, fui à lista telefónica, vi o número dele, telefonei-lhe e disse: "Gostava muito de te ver, dar-te um abraço…" Fui a casa dele: "Epá, é que vou fazer uma revolução e preciso de ti." Ele disse: "Estás maluco, estás a brincar?". Respondi: "Não, é a sério. Vou derrubar o Governo e preciso de informações sobre a GNR, que é inimigo. E tu vais dar-me essas informações: o que é a GNR, que viaturas tem, que armamento, o que faz, patrulhas… Preciso desses elementos todos." Ele ficou assustadíssimo. Mas disse-me "ok". Passado menos de uma semana, telefonou: "Epá, queres cá vir?" Deu-me os elementos. DW África: Considera hoje que foi loucura? OSC: Loucura não, porque eu estava perfeitamente consciente do que estava a fazer. Simplesmente disse: entre não saber o que é o inimigo e lançar-me às cegas contra uma parede que não conheço, tenho de procurar saber, mesmo correndo o risco. Portanto, foi um correr de risco perfeitamente consciente. DW África: Paulo Moura escreve na sua biografia: "Era como se a revolução estivesse à espera de ser feita mas precisasse, ainda assim, de alguém que a fizesse." Era isso que sentia? OSC: Na altura não tive essa consciência. Eu sou um homem de compromissos e, quando assumo um compromisso, só a morte é que pode impedir que não cumpra aquilo que prometi fazer. De tal forma não tinha consciência daquilo em que estava empenhado que, quando tudo acabou e eu mandei libertar a malta que foi presa no 16 de março aqui na Trafaria, o Almeida Bruno, quando eu sou chamado a Belém, diz-me: "Otelo, tu já estás na História". E nem tínhamos uma relação muito estreita. E eu disse: "Ah, na História o quê…" Portanto, considerava uma coisa banal, quase. Era necessário. Eu estava naquelas circunstâncias, tinha sido indigitado para a direção do Movimento das Forças Armadas (MFA). Tinha assumido aquele compromisso, tinha de o fazer.
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"Tenho muita honra em ter participado na descolonização", diz Mário Soares
O ex-Presidente português foi o primeiro a pegar na pasta ...
O ex-Presidente português foi o primeiro a pegar na pasta dos Negócios Estrangeiros após a revolução de 25 de Abril. Em entrevista, Soares fala sobre a descolonização e faz o balanço de 40 anos de liberdade em Portugal. Mário Soares, 89 anos, esteve na linha da frente da oposição à ditadura fascista em Portugal. Foi preso várias vezes pelo regime ditatorial e esteve exilado em São Tomé e Príncipe e em França. Foi no exílio que Mário Soares recebeu a notícia do golpe de Estado de 25 de Abril de 1974. Assim que soube o que se estava a passar, apanhou um comboio com destino a Portugal. O histórico do Partido Socialista (PS) português regressou com três ideias para o país: democratizar, desenvolver e descolonizar. No dia em que foi empossado como ministro dos Negócios Estrangeiros do novo Governo, Mário Soares foi logo para Dacar, a capital senegalesa, para iniciar conversações com o Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC). Na Zâmbia, Soares protagonizou, com Samora Machel, o chamado "abraço de Lusaca", nas negociações de Portugal com a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO). Mas muitos continuam a criticar a forma como Mário Soares fez a descolonização. Particularmente os portugueses que tiveram que fugir das ex-colónias, os "retornados". DW África: Como recebeu a notícia do 25 de Abril? Mário Soares (MS): Estava justamente na Alemanha a convite do meu amigo Willy Brandt [ex-chanceler alemão]. Estava com a minha mulher e com mais dois camaradas meus, que eram também dirigentes do Partido Socialista. Na véspera, falámos com o ministro das Finanças alemão [Helmut Schmidt], que tinha estado na guerra de Espanha. Ele era todo a favor de Espanha e achava que Portugal não tinha assim grande importância. Ele disse-me: "Olhe que vocês só se podem libertar da ditadura [de António Salazar e Marcello Caetano] quando houver a libertação do Franco, em Espanha". E eu disse-lhe: "Olhe que não é assim, nós somos os primeiros a libertar-nos, antes da Espanha e da Grécia", como realmente fomos. Estivemos toda a noite a discutir isso. No dia seguinte, de manhã cedo, telefona a responsável pelos partidos socialistas estrangeiros que iam lá a Alemanha. E diz: "Afinal, parece que tem razão, está-se a passar qualquer coisa em Portugal." DW África: O 25 de Abril foi uma surpresa? MS: Não, porque eu estava sempre à espera que houvesse uma revolução. Eu sabia que o que se estava a passar era uma coisa absurda. E cheguei a Portugal com três ideias na cabeça – muito simples, mas importantíssimas. A primeira era descolonizar, a segunda era democratizar e a terceira era desenvolver o país. Enquanto estive [no exílio] em Paris, tinha tido muitos contactos com os africanos que lá iam, que me iam cumprimentar e diziam: "O que é que se vai passar, como é que se vai passar?" A minha primeira ideia era descolonizar. […] Sem descolonização não se passaria a nada, porque a guerra continuaria. E eu fui, de facto, a primeira pessoa que chegou a Angola e disse: "Vocês vão ser independentes!" Já era ministro dos Negócios Estrangeiros, diga-se. DW África: Noutras entrevistas, disse que tinha em mente uma "descolonização possível". O que é que isto significava? MS: Significava que queria chegar e ter a descolonização para parar com as guerras. E, de facto, é preciso ver que, quando cheguei, não sabia o que se ia passar. Logo no primeiro dia, o general António de Spínola [primeiro Presidente português após a revolução] acreditava que era possível manter uma espécie de acordo e fazer a paz com as colónias, ficando elas colónias. Eu disse-lhe logo que isso não tinha sentido nenhum e que tínhamos de dar a independência às colónias – sem isso nada feito. Por isso é que eu digo, descolonizar em primeiro lugar, não havia democracia possível sem isso. DW África: Esteve em Lusaca (Zâmbia) para negociar a independência de Moçambique. Encontrou-se com Samora Machel, da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO). No início das conversações, dá a Samora Machel um abraço. Por que decidiu pôr o protocolo de lado e abraçar Samora Machel? MS: Eu não decidi nada. Foi uma coisa completamente espontânea. O Kenneth Kaunda [ex-Presidente da Zâmbia] disse-me: "Meu caro senhor, isto vai-se passar assim: há uma grande mesa onde está, de um lado, todo o ministério, eu próprio e os embaixadores e, do outro, estão os jornalistas de todos os países do mundo. O senhor entra por um lado e o Samora entra pelo outro. Fazem uma vénia e ficam cada um no seu lugar. E eu faço um discurso." Eu pensei com os meus botões: "Este Kaunda julga que eu sou inglês, mas eu não sou inglês." Ele fazia tudo à inglesa. "Eu não sou inglês, sou português. É uma coisa muito diferente." Portugal já existia antes de existir a Inglaterra propriamente dita. E eu disse-lhe: "Está bem, sim senhor, vamos ver." E assim foi. Entrámos os dois. E o Samora, que eu não conhecia, fez um sorriso amplo. Eu fiz um sorriso mais amplo e, sem fazermos o que queria o Kaunda, fomos ao encontro um do outro e demos um grande abraço. Foi o chamado abraço de Lusaca. Invertemos todo o protocolo e, a partir do abraço, toda a gente começou a bater palmas, jornalistas incluídos. O Kaunda nem chegou a falar. DW África: Que repercussões teve este abraço? Porque era um abraço simbólico… MS: Era um abraço simbólico. Mas, ao mesmo tempo, foi um abraço de um tipo que era muito hábil e muito inteligente, que era o Samora, e de eu próprio: ambos queríamos fazer a mesma coisa, que era fazer a paz através da independência. DW África: Podia ter-se evitado a guerra civil em Angola ou Moçambique se a descolonização tivesse sido feita de outra forma? MS: Não. Ou a descolonização era feita a sério ou não. Porque o regime de Salazar não acreditava sequer que isso fosse possível. Depois, com Marcello Caetano, a emenda foi pior que o soneto, porque eles queriam fazer umas pequeninas coisas mas acabaram por não conseguir fazer nada. Eles não eram a favor da descolonização. Não percebiam a importância que tinha a descolonização feita em paz. E, realmente, eu tive dificuldades em vários países europeus. Diziam: "Mas vocês querem fazer a descolonização neste tempo?" Queremos. Porque eu convivi com todos eles, desde o tempo em que havia uma coisa que se chamava a Casa dos Estudantes do Império. Eles traziam os melhores estudantes africanos para cá. Foi o ninho de onde saiu tudo para fazer a revolução. Os que eram de Angola queriam a independência de Angola, os de Moçambique queriam a independência de Moçambique e por aí fora. E isso apagou-se, porque todos são independentes. DW África: Disse que o processo de descolonização foi exemplar face às condições no Portugal pós-revolução. Continuar a pensar assim? MS: Pois foi. Houve tiros? Não houve. Houve lutas? Não houve. Houve paz? Houve. A paz é o principal. E o bom relacionamento que fica em virtude da paz. Depois, quando houve guerras entre eles, claro que nós não podíamos tomar partido. Quando me diziam: "Você é do Savimbi!". Não sou. "Você é do MPLA!" Não sou. "O que é que você é?" Sou de Angola, sou a favor de Angola e da independência em Angola, mas não me tenho que meter nas vossas lutas. Queria era que vocês fizessem a paz entre vocês. E lutei por isso. Não foi possível. DW África: Que balanço faz hoje da descolonização, olhando também para as dificuldades que a maior parte das ex-colónias portuguesas ainda está a enfrentar? MS: Bem, as dificuldades resultam de várias circunstâncias… Mas a verdade é que não têm assim grandes dificuldades. Porque Angola é um país riquíssimo – tem petróleo, diamantes e muitas outras coisas por explorar. Moçambique é hoje tão rico ou mais do que Angola, porque, além de tudo, tem gás natural, também tem petróleo e, cada vez mais, está-se a ver que vai ser um país de uma riqueza enorme. Enquanto foram colónias ninguém sabia que havia petróleo. Quando disseram ao Salazar que parecia haver petróleo em Angola, ele pôs a mão na cabeça e disse: "Que desastre maior é que nos vai suceder ainda?" Era a visão dele. Enquanto eles foram colónias ninguém se interessou pelo que eram as colónias. Queriam era extrair dinheiro de lá para trazer para cá. Mais nada. DW África: De qualquer das formas, hoje continua muita gente a viver na pobreza… MS: Pois continua. Mas isso é outra questão. É a questão social. Haver ou não haver dirigentes competentes. Isso agora já é com eles, não é connosco. DW África: Continua a ouvir críticas dos retornados? MS: De vez em quando, os chamados "retornados" dizem… Mas, na altura, eu fui condenadíssimo por causa da descolonização. […] Os retornados nunca perceberam que foi a sorte grande que lhes saiu. Nunca perceberam isso. Vieram para Portugal em condições difíceis, é verdade. Porque se assustaram e fugiram. Chegaram a trazer automóveis; outros nem isso, não trouxeram nada. E nós arranjámos uma solução para lhes dar tudo. Demos-lhe dinheiro, casas… Fomos nós! Porque logo a seguir fui presidente do Governo e, por isso, dirigia essa questão. […] E eles a dizerem: "Você roubou Angola e vendeu Angola aos russos…." Tudo isso, claro, são mentiras puras. E, realmente, estou muito orgulhoso do que se fez com a descolonização. Tenho muita honra em ter participado nisso ativamente. DW África: Olhando para trás e para os dias de hoje, Portugal tornou-se o país por que lutou, por que foi preso e por que esteve no exílio? MS: Depois do 25 de Abril, Portugal foi um país extraordinário. Nós fizemos tudo. Entrámos na União Europeia, um grande gesto. Desenvolvemos uma política social imensa. Tivemos um serviço nacional de saúde gratuito. Houve respeito pelos sindicatos de todas as naturezas. E o diálogo social entre sindicatos e empresas para fazermos a concertação social. Tudo isso se fez. Fizemos um país que, até à crise, era um país extraordinário. Agora, há uma crise social? Há! Há uma crise política? Há! Há uma crise moral? Há! Sobretudo moral e ética. Há uma crise sobre todos os aspetos atualmente. E isso está a destruir Portugal ou está a tentar destruir Portugal.
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"Eles lutavam pela independência, eu estava ali a mais", recorda Vasco Lourenço
O português foi um dos militares que organizou o golpe ...
O português foi um dos militares que organizou o golpe de 25 de Abril. Na altura, a guerra colonial não tinha fim à vista. Por isso, o capitão decidiu deitar abaixo o regime em nome do prestígio das Forças Armadas. Antes de ir para a guerra na Guiné-Bissau, em 1969, o militar português Vasco Lourenço propôs um lema para o seu batalhão: "contrariados, mas vamos". Porém, o lema não foi aprovado. Portugal combateu contra os movimentos de libertação africanos durante 13 anos. À semelhança do que acontecera na Índia portuguesa, o regime ditatorial parecia lutar teimosamente contra o inevitável – a concessão dos territórios no chamado Ultramar. Muitos militares começam a conspirar, Vasco Lourenço era um deles. Para o então capitão, a solução para o conflito colonial só podia ser política. Mas, em 1973, o Governo português publicou um decreto que facilitava o acesso aos quadros permanentes das Forças Armadas, antevendo assim a continuação do esforço de guerra. Foi o princípio do fim. Vasco Lourenço insurgiu-se contra o decreto. Começou a conspirar contra a ditadura fascista e convenceu os colegas de que era necessário recuperar o prestígio das Forças Armadas junto da população, que associava os militares ao regime ditatorial. Segundo Vasco Lourenço, só havia uma forma de fazer isso: derrubar o Governo. DW África: Houve algum episódio que o tenha marcado particularmente quando combateu na Guiné-Bissau? Vasco Lourenço (VL): Houve uma situação que alterou radicalmente a minha maneira de estar perante a guerra e perante o próprio país. Em determinado momento, descobri uma rede de informações no seio da população e de elementos de milícias guineenses que lutavam comigo em operações militares. Descobri que não havia nenhuma operação que fizéssemos em que eles não enviassem alguém ao Senegal, do outro lado da fronteira, a informar sobre o que íamos fazer. E descobri que o chefe dessa rede de informações, um milícia chamado Bori, tinha morrido numa emboscada, mesmo ao meu lado, cerca de quinze dias antes de eu descobrir a rede. Isso chocou-me profundamente. Dei por mim a questionar-me e a pensar: "Que raio de guerra é esta em que um indivíduo acaba por ser morto pelos próprios companheiros? E aí, depois de alguma discussão com os meus alferes e furriéis sobre estes pontos de vista, cheguei à conclusão que quem estava certo eram eles, que estavam a lutar pela independência e pela liberdade. Eu é que estava errado e estava ali a mais. É evidente que esta perceção não caiu do céu, já se vinha formando há bastante tempo. Mas é aí que se dá o clique e percebo que, de facto, a guerra é injusta e ilegítima. E que não posso participar mais naquela guerra. DW África: Temia-se na Guiné-Bissau uma segunda Índia? VL: Era diferente. Na Índia, era absolutamente utópico pensar em resistir naquelas condições à invasão que a União Indiana fez. Portanto, houve a derrota militar. Depois, houve a atitude miserável do Governo, que atacou os militares como bode expiatório do que se tinha passado. Na Guiné-Bissau era diferente. Essa derrota militar não se daria como se deu na Índia, porque, em termos militares, o Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) não tinha forças para derrotar daquela maneira as forças portuguesas. Os guineenses tinham zonas que controlavam bastante bem e a que nós tínhamos imensa dificuldade em chegar, principalmente a partir do momento em que perdemos o apoio da Força Aérea. Mas eles também não conseguiam desalojar-nos da generalidade dos sítios onde estávamos. Portanto, a guerra, em termos militares, poder-se-ia ter prolongado bastante. Não, o problema era político. DW África: E era uma teimosia… VL: Era a política. Repare, nunca as Forças Armadas declararam a guerra em qualquer sítio do mundo. Quem declara a guerra são os políticos. Portugal estava surdo, cego e mudo aos ventos da História. Achavam que estávamos orgulhosamente sós. Sós, mas orgulhosamente. Andávamos a defender os valores que eles achavam ser os valores da civilização cristã e ocidental. Estávamos sozinhos, porque éramos nós que determinávamos quais eram esses valores e assumíamo-nos, isolados, como os seus defensores. A generalidade dos países ditos nossos aliados apoiava os nossos adversários, direta ou indiretamente. O próprio Papa [Paulo VI] recebeu os líderes dos movimentos de libertação. Portanto, a questão era essencialmente política. É isso, aliás, que está na origem do 25 de Abril. DW África: Recorda-se de algum episódio que espelhe as dificuldades de organizar o golpe de Estado? VL: Eu posso-lhe contar vários. Mas há um que mostra como tínhamos de ir tateando… Numa reunião clandestina [em dezembro de 1973], há um major de Cavalaria que se levanta e diz: "Eu ouvi aqui falar em direito à autodeterminação e independência… Mas isso é traição! Eu estou aqui a mais." Ficámos todos a olhar: "O que é isto? De onde caiu este pássaro?" Ele percebeu a situação dramática em que estava e, até pelas características dele, um homem extraordinariamente conservador, mas honesto de princípio, diz: "Eu dou a minha palavra de honra. Vou-me embora mas não conto nada do que aqui se passou". Eu, que estava a moderar a reunião, olhei rapidamente para a malta e digo: "Podes ir embora, mas lembra-te da promessa que acabaste de fazer. Se abrires a boca, qualquer dia chocas aí com uma coisa fria ou com uma coisa quente sem saberes de onde vem. Vê lá o que é que vais fazer." Ele responde: "Não, eu dou a minha palavra de honra que não digo nada". Isto mostra, de facto, as dificuldades que nós tivemos. Vamos discutindo a necessidade de um programa político… Temos a noção de que, quando fizermos um golpe de Estado, temos que apresentar um programa político, porque senão era só mudar as moscas e o resto ficava na mesma. Depois, escolhemos os generais Costa Gomes e Spínola para os convidar para liderarem o movimento – na condição de aceitarem o programa político que aprovámos – e, a seguir, dá-se o voto de confiança à comissão coordenadora e à direção (o Vítor Alves, o Otelo e eu próprio) para levarem à prática estas decisões. Depois, sou posto fora do circuito, com uma situação rocambolesca, porque sou "raptado" pelos meus camaradas para demonstrarem que eu até queria ir, eles é que não me deixavam. Depois estive preso. Mas, de facto, é extraordinariamente complicado. DW África: O que previa o programa político do Movimento dos Capitães no capítulo da descolonização? VL: Direito à autodeterminação e independência. Isso depois é alterado no dia 25 de Abril à noite por pressão do general Spínola. É uma das falhas que o processo teve e que vem a ter consequências dramáticas para Portugal e para os portugueses. Porque quando o programa é difundido e a nossa posição favorável à autodeterminação e independência dos povos, que tinha sido discutida com o próprio general Spínola, foi substituída por qualquer coisa do estilo "continuação de uma política ultramarina que leve à paz", muito "soft", os movimentos de libertação recrudesceram no esforço de guerra. E, entre o 25 de Abril e o fim da guerra, nós portugueses sofremos mais de 400 mortes. DW África: Foi preso a 9 de março de 1974 e estava nos Açores quando foi o 25 de Abril. Como recebeu a notícia? VL: Tinha combinado com o Otelo o envio de um telegrama em código para a sogra do Melo Antunes. Precisamente para despistar. E, no dia 24, foi recebido um telegrama com o código que eu tinha mandado ao Otelo "Tia Aurora segue Estados Unidos da América 25.0300. Um abraço, primo António". Eu tinha-lhe mandado um texto que era "Tia Aurora segue". Depois, ele teria de pôr o local para onde seguiria um avião na data/hora que ele depois colocaria. "Um abraço, primo António", eu tinha posto. Portanto, o que ele preencheu foi só "Estados Unidos da América 25.0300", que era dia 25 às três da manhã. DW África: O 25 de Abril correspondeu às suas expectativas? VL: Dir-lhe-ei que sou otimista. Em termos militares, correspondeu. A minha reação imediata quando ouvi "Aqui Posto de Comando" no Rádio Clube Português [o anúncio dos militares revolucionários, que acabavam de assumir o controlo da rádio] foi "ganhámos!". Estava convencido que íamos ganhar. Além disso, a reação de apoio que tivemos foi incomensuravelmente maior do que aquela de que estávamos à espera, o que nos influenciou decisivamente. Depois, na sua generalidade, as consequências corresponderam ao que eu ambicionava: a solução para a guerra colonial, o direito dos povos à autodeterminação e independência, e, em Portugal, a instalação de uma democracia política, a criação de uma sociedade muito mais justa, mais desenvolvida e o sair do isolamento internacional em que nós estávamos. Infelizmente, isso hoje está tudo a perder-se. DW África: Ao olhar para o Portugal de hoje, foi esta a democracia que queria quando organizou o golpe de Estado? VL: A de hoje não. Hoje somos um protetorado, um país ocupado por forças estrangeiras – pela Alemanha principalmente. Depois, somos um país que foi assaltado por elementos que ocuparam o poder que se mostram como herdeiros dos elementos que foram vencidos no 25 de Abril e atuam como estando a querer vingar-se do que aconteceu no 25 de Abril. Estão a destruir tudo o que podem destruir que cheire a 25 de Abril. Estão a fazê-lo como capatazes das forças estrangeiras. Tem que ver com a situação internacional que se vive, onde o poder financeiro assume, de facto, o domínio da situação e está a destruir por completo tudo aquilo que foi alcançado pela luta dos cidadãos de todo o mundo nestes últimos 200 anos. Hoje, em Portugal, temos a democracia formal, mas isso não chega. A Justiça não funciona. Todos os avanços que se deram na saúde, educação, segurança social estão a desaparecer. E, por isso mesmo, este não era de maneira nenhuma o país que eu ambicionava quando arranquei para o 25 de Abril.
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No rastro dos gorilas da montanha no Uganda
No Parque Nacional de Bwindi, no sudoeste do Uganda, vivem ...
No Parque Nacional de Bwindi, no sudoeste do Uganda, vivem 302 dos cerca de 800 gorilas da montanha que existem na África oriental. E há turistas que não olham ao preço para observar esta espécie em vias de extinção. A investigadora Dian Fossey e o filme “Gorilas na Bruma” tornaram famosos os gorilas da montanha da África oriental, uma espécie em vias de extinção que atrai a curiosidade de muitos turistas. Uma caminhada para seguir o rastro de um gorila nas montanhas onde estes vivem custa aproximadamente 400 euros. Cada família de gorilas está autorizada a receber um máximo de oito visitas de uma hora por dia. Para a zoóloga Martha Robbins, do Instituto Max-Planck de Antropologia Evolutiva, com sede em Leipzig, na Alemanha, é importante que as visitas continuem a ser limitadas. “É notável o facto de os gorilas da montanha estarem entre as poucas espécies de primatas cuja população aumentou nas últimas décadas. E isso deve-se aos imensos esforços levados a cabo para os proteger”, afirma a investigadora. Recolha de amostras Nos últimos anos, Martha Robbins e sua equipa percorreram o Parque Nacional de Bwindi e recolheram amostras fecais de todos os gorilas para fazer análises genéticas. Desta forma, podem determinar exatamente quantos gorilas aqui vivem. São as visitas diárias de turistas um fator de stress para os gorilas? A investigadora, que estudou o comportamento reprodutivo dos gorilas da montanha em Bwindi, diz que não foram observamos quaisquer sinais nesse sentido, como por exemplo uma taxa de natalidade menor. “E há provas de que os gorilas que já estão habituados às pessoas - porque todos os dias recebem visitas e são monitorizados - estão melhor do que alguns dos grupos que não estão habituados a estes contactos”, acrescenta. O turismo contribui, assim, para preservar a população de gorilas no Parque Nacional de Bwindi. Uma população bem preciosa, pois apenas sobraram algumas centenas de gorilas da montanha. Como uma boa parte deles vive no Parque Nacional de Virunga, na República Democrática do Congo e sofre com a guerra civil nesta zona, torna-se cada vez mais importante proteger os gorilas do Parque de Bwindi.
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Milícias radicais recrutam jovens quenianos em Mombaça para a "guerra santa"
Maior engajamento tem provocado aumento no número de ataques na ...
Maior engajamento tem provocado aumento no número de ataques na segunda maior cidade do Quênia. Muitos jovens veem em grupos radicais uma forma de responder à violência do Estado. A milícia Al-Shabaab tem recrutado jovens na costa do Quênia. Desde o ataque ao Centro Comercial Westgate em Nairóbi, no ano passado, muitas pessoas deixaram as localidades da região da costa do Quênia temendo que elas sejam o próximo alvo. A milícia somali recruta jovens em locais turísticos. Forças de segurança patrulham praias para evitar novos ataques. Vários jovens quenianos já foram para a vizinha Somália para participar da "guerra santa". Era uma sexta-feira, em Mombaça, e os muezins convocavam para as orações. A reportagem da DW África queria ir para a mesquita de Sakina, local de confrontos entre radicais mulçumanos e sacerdotes moderados nas últimas semanas. Na ocasião, a polícia interveio e houve mortes. Ainda hoje os ânimos ainda parecem carregados. Os líderes evitam ir com a reportagem para Sakina. "Isso pode ser impossível para você porque o coração do movimento dos muçulmanos em Mombaça é neste lugar e aqui tudo acontece. Então você deve imaginar que o FBI e a CIA fazem gravações e escutas por aqui", explicava o guia da equipe da DW. Os taxistas também parecem não se convencerem facilmente a ir para o local. No entanto, após alguma insistência, um motorista de Tuktuk se diz em condições de conduzir a equipe à mesquita no seu triciclo. Núcleo do terrorismo O taxista alerta para esconder o microfone. É o período entre as orações da tarde e da noite. Rapazes estão em volta da mesquita, em frente às barracas de comércio abertas. Aparelhos de televisão são instalados. Nas telas, as imagens dos pregadores radicais durante seus discursos. DVDs que mostram como fazer cintos explosivos são vendidos nos balcões das barracas. A turística Mombaça se transformou em um núcleo do terrorismo. A milícia radical islâmica Al-Shabaab, da vizinha Somália, estendeu-se pela área para recrutamentos. Jovens têm desaparecido do dia para a noite. Eventualmente, suas mães recebem ligações telefônicas que informam que eles entraram para a "guerra santa". O grupo radical tem buscado novos soldados em outros resorts pela costa. Diani, por exemplo, é um dos mais populares destinos turísticos para férias. Fica ao sul de Mombaça. A praia tem 25 quilômetros de extensão com pousadas e hotéis, além de muitos bares. Um deles foi alvo de ataque no início do ano. A bomba explodiu perto da mesa de bilhar, deixando dez pessoas feridas. Outras vítimas Sauma Mwachambuli mora numa vila pouco distante dos locais turísticos. No terreno em frente á casa crescem legumes e galinhas são criadas. O interior da residência é simples. Há um sofá cama para os hóspedes. A mulher, de 48 anos, vive com duas crianças. Ela perdeu um terceiro filho. Suleiman tinha 22 anos quando morreu. "Ele era um bom menino. Eu nunca precisei me preocupar com ele. Ele me apoiava. Podia mandar ele fazer compras e ele sempre trazia os peixes mais frescos. Ele não tinha absolutamente nenhum hábito ruim", explica Mwachambuli. Ele costumava ir para a mesquita e seguramente sua mãe não via isto como um problema. No entanto, naquelas mesquitas da costa é pregada a luta contra os descrentes. Há pouco emprego na região e as milícias se aproveitam disto. É oferecido dinheiro para os jovens rapazes quando eles vão para a Somália para lutar contra as tropas do Governo somali e da União Africana. "Um homem me ligou, dizendo que meu filho Imran estava morto. Eu não sabia no que acreditar. Afinal aquele não era o nome do meu filho. Então eu liguei para o homem novamente e ele explicou que Imran era o novo nome de meu filho na Somália. Eu não podia acreditar nele, que meu filho teria sido morto por Alá. Quando eu quis ligar novamente, ninguém mais atendia", lembra Mwachambuli. O exemplo para os mais jovens O pregador radical mais conhecido em Mombaça é Aboud Rogo. Ele foi classificado pelos Estados Unidos como terrorista. Estaria envolvido no primeiro grande ataque da Al-Qaeda na região, quando das explosões nas embaixadas dos Estados Unidos no Quênia e na Tanzânia. Os ataques mataram mais de 200 pessoas. Aboud Rogo pode ser visto no DVD que os jovens na mesquita de Sakina assistem. No vídeo, ele prega contra os infiéis. "Meus irmãos muçulmanos, é fato que os cristãos não gostam de vocês. Talvez nem do nosso profeta Maomé. Eles o definiram como um porco. Vocês querem isto? O único remédio contra um cristão é um rifle. As contas dos pregadores foram congeladas. Isto não o impediu de continuar solicitando auxílio da milícia Al Shabaab", Rogo prega em um dos vídeos. Em um momento ele revela a interpretação dos radicais sobre o contexto de conflito em que vive a região: "Não fiquemos confusos. A guerra na Somália é contra todos nós. Então trata-se de uma guerra contra o Islão." Em agosto de 2012, Aboud Rogo foi morto com quase 20 tiros que teriam sido disparados por um desconhecido. Seus apoiantes supõem que a Polícia Anti-terrorismo do Quênia queria assassiná-lo. Violações de direitos O cristão Francis Auma trabalha para a organização "Mulçumanos pelos Direitos Humanos" no Quênia. Juntamente com outros profissionais, ele publicou uma pesquisa sobre a Polícia Anti-terrorismo queniano. O resultado é que o Reino Unido e os Estados Unidos estariam "apoiando que a força de segurança empregasse tortura e assassinatos." "Nós testemunhamos isto. Nós temos falado com familiares de vítimas e também com pessoas que foram até mesmo interrogadas pela Polícia Anti-terrorismo. Muitos denunciam tortura. Há casos em que as pessoas desaparecem. Nada disso é bom para este país", opina Auma. Os ânimos ficam ainda mais agitados quando muitos jovens percebem que seus amigos acabam sendo presos. A aparente injustiça acaba servindo de combustível para a radicalização. "Os jovens estão cansados. A polícia mata. Então eles dizem: "se de qualquer forma eles consideram a nós, muçulmanos, como terroristas, nós podemos realmente entrar em grupos radicais e se matar." Após a morte de Aboud Rogos, rapazes acabaram tendo este sentimento. Acima de tudo alguns líderes muçulmanos como Sheikh Abubakar Sharif Ahmed. Ele é conhecido como Makaburi, que em suaíli significa cemitério. Sharif era um confidente de Aboud Rogo. Assim como seu amigo, ele está na lista de sancionados da ONU porque tem convocado as pessoas a lutar pela rede Al Qaeda e matar cidadãos norte-americanos. O escritório de Makaburi é localizado no primeiro piso de um edifício de cinco andares. Na entrada há um portão de metal para garantir a segurança. Câmeras internas não podem ser percebidas. Durante a entrevista à DW África, Makaburi fica sentado em frente às telas para examinar cada visitante antes de deixá-lo entrar. O jovem líder é desconfiado. Além de Aboud Rogo, outros de seus conhecidos também foram mortos. Bandeira terrorista O escritório que ele comanda é bastante estreito. Makaburi fica apertado em uma cadeira giratória. Ele transparece bastante respeito, apesar de usar uma camiseta branca com alguns furos com algumas manchas. Sua barba é tingida de vermelho com henna. Na parede, há um cartaz com uma espada com letras árabes, que também é conhecida como "bandeira negra da Jihad". "Eles nos caracterizaram como terroristas. Se é assim, eu sou mesmo um terrorista. Eu vou concordar com isto em qualquer tribunal", desabafa. Ele acha que os muçulmanos são um alvo e reclama do fato de pessoas inocentes serem mortas sem qualquer preocupação das autoridades ocidentais. Para Makaburi, os muçulmanos devem contra-atacar. É isto que ele prega para muitos jovens que o enxergam como um modelo. "O que eu deveria fazer? Deveria dizer para eles continuarem desarmados enquanto o governo queniano os mata? Os jovens muçulmanos de Mombaça têm que lutar porque as suas vidas estão ameaçadas. Precisamos convocar a guerra santa no Quênia porque eles têm ficado sob pressão e até mesmo sido mortos." Turismo ameaçado Os ataques em Nairobi e a violência em Mombaça tiveram um efeito negativo para o Quênia como "paraíso de férias". Makaburi diz que o Governo ainda se mostra bastante seguro a nível internacional, mas muitos proprietários de hotéis na costa têm reclamado que metade de suas acomodações não é ocupada até mesmo na alta temporada. Até agora, as muitas mesquitas de Mombaça e a cultura do Islão eram algumas das razões que faziam da segunda cidade do Quênia popular com turistas. Agora os hóspedes não aparecem mais com medo de sofrerem ataques. A reportagem encontrou dois seguidores de Makaburi. Ambos com aproximadamente 20 anos. Eles parecem ainda mais suspeitos do que o pregador. Sem nomes, sem fotos... Um deles é um estudante de medicina que desistiu do curso porque a sua fé é mais importante. "Meu primeiro objetivo é viver como um muçulmano. Exercer a medicina é um caminho diferente. A religião é um caminho para curar certas doenças do coração", conta o ex-estudante. A conversa parece o maravilhar. No entanto, o efeito é diferente com seu amigo que não guarda por muito tempo a informação de que se sente perto da milícia radical Al-Shabaab. "Al-Shabaab são muçulmanos. Nossos irmãos muçulmanos. Eles lutam por nossos direitos exatamente como a Al Qaeda. Se eu tiver a chance de lutar em qualquer lugar onde a Jihad tenha lugar, eu vou." Seus olhos marejam quando ele diz isto. Será que ele quer se fazer de herói ou ele realmente tem isto em mente? "Eu estou pronto para morrer porque eu estou defendendo a minha religião. Se eu for morto pela Polícia Anti-Terrorismo ou se tombar durante a luta, me será garantido o caminho do paraíso." Talvez ele vá em breve para a Somália. O quieto estudante de medicina foi visto pela reportagem algum tempo depois em um jornal queniano. Ele foi preso com outros, suspeito de planejar ataques terroristas. Os últimos levantes em Mombaça têm sido sangrentos e com certeza não serão os últimos.
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A difícil vida dos cristãos na Coreia do Norte e na China
Em muitos países do mundo, os cristãos não podem exercer ...
Em muitos países do mundo, os cristãos não podem exercer livremente a sua religião. Em dois estados comunistas na Ásia, a Coreia do Norte e a China, muitos preferem viver sua fé na clandestinidade a sofrer perseguições. Os poucos cristãos que vivem na Coreia do Norte têm que permanecer incógnitos. Oficialmente, são considerados inimigos do Estado. David Atkinson está muito preocupado com o destino dos cristãos neste país asiático. O teólogo evangélico é responsável por informações e pesquisas no ramo alemão da organização interdenominacional internacional Missão Portas Abertas, dedicada a apoiar cristãos perseguidos em países onde o cristianismo é legalmente desencorajado ou reprimido. Há mais de uma década, a Coreia do Norte ocupa a primeira posição na Classificação de Países por Perseguição, anualmente divulgada pela Portas Abertas. Lá há muito que fazer, segundo Atkinson. “Nossos irmãos e irmãs de fé no local dizem: precisamos de suas orações," diz. Por esta razão, a Portas Abertas organiza com frequência grandes convocatórias de oração. Centenas de multiplicadores – entre eles pastores e trabalhadores das igrejas - levam os pedidos de oração para as suas comunidades predominantemente evangélicas. As intenções estão voltadas para a mesma direção: a Coreia do Norte. O líder do Estado e do partido no poder, Kim Jong Un, segue a tradição de seu pai e avô. Com cerca de 24 milhões de habitantes, o país permanece fechado. A ideologia do Estado domina a vida social. Aos poucos cristãos, não restam muitas escolhas, senão permanecerem tão desconhecidos quanto possível. São considerados forças reacionárias. Assim, o perigo ameaça-lhes a vida e a integridade física. Número de cristãos incerto O número exato de cristãos vivendo na Coreia do Norte é difícil de calcular, para não dizer impossível. As estatísticas oficiais registram 15 mil cristãos, dos quais dois terços seriam evangélicos. Já de acordo com as estimativas da Portas Abertas, “são pelo menos 200 mil cristãos." Outros especialistas, no entanto, consideram este número muito alto. É o caso do professor e diretor do Instituto Internacional de Liberdade Religiosa, na Alemanha, Thomas Schirrmacher. Segundo o professor, existem estimativas de algumas organizações que se baseiam principalmente nas informações fornecidas por refugiados que deixaram o país pela fronteira para a China, o que torna “difícil de verificar, porque não há uma metodologia." Se por um lado as declarações dos refugiados não podem ser consideradas como dados científicos, o professor Schirrmacher acredita que é possível saber comparando “quantos campos de detenção há, quantas pessoas estão nesses campos e quantos deles são presos políticos – e os cristãos contam como presos políticos." Sobre os internados, há números da Human Rights Watch, “que estima um total de 600.000 a 700.000 presos," afirma o professor. O número de cristãos teria se mantido entre 10 a 12% deste total, segundo Thomas Schirrmacher. Isso sugere que, atualmente, mais de 80.000 cristãos podem ter desaparecido atrás do arame farpado que cerca os campos de detenção. O risco da fé A organização internacional cristã Portas Abertas está ativa em 60 países, com cerca de 1.000 funcionários e teria bons contatos não-oficiais com os cristãos na Coreia do Norte e com os refugiados norte-coreanos. David Atkinson salienta que os cristãos são considerados inimigos do Estado. “Eles são dissidentes políticos, vivem em um Estado totalitário e têm um outro rei. Eles têm Jesus Cristo como seu rei e isso não é bem visto," explica. Exceto em quatro paróquias instaladas pelo governo, desde 1988, na capital Pyongyang, a vida da comunidade cristã seria impossível. Um sofisticado sistema de vigilância por parte da polícia, agentes secretos e comitês de vizinhos força os fiéis à clandestinidade, revela Atkinson. Eles apenas podem viver em círculos residenciais ocultos. “Outros são conectados em grupos de dois, de modo que os riscos sejam menores. E então, podem passear. Parece que estariam falando sobre o tempo, mas eles podem trocar pedidos de oração e estar lá uns para os outros como irmãos e irmãs," diz. Inteligência secreta a serviço do controle religioso Para Thomas Schirrmacher não há dúvidas de que “a Coreia do Norte aprendeu com a China dos anos 1960 e 1970, a forma de se infiltrar nas comunidades para obter as informações necessárias." De acordo com Schirrmacher, os refugiados norte-coreanos que estão na região da fronteira chinesa, relatam o quão restritivo é o procedimento do Estado com os cristãos. Muitas vezes, possuir uma Bíblia é suficiente para que toda uma família desapareça em um dos campos de trabalho. Às vezes, os proprietários das Bíblias que se encontram presos nos campos são executados, mas mais frequentemente morrem por meio de trabalhos pesados. "O fato de que as pessoas que por isso foram atacadas algum tempo depois já não estejam mais vivas, a este respeito há testemunhas suficientes," garante ele. A fronteira da Coreia do Norte com a China tem mais de 1.400 quilómetros de extensão. Assim, seria possível que os norte-coreanos sempre pudessem deixar o país – de forma considerada ilegal. Eles se tornaram, porém, a principal fonte de informação para os internos norte-coreanos. Disso sabia também o regime. Por isso, o serviço secreto norte-coreano seria ativo também no lado chinês e trabalharia lá, aparentemente com a tolerância da China, para encontrar e trazer de volta os refugiados, explica o professor de Bonn, Thomas Schirrmacher. “Houve também círculos de oração que foram fundados e liderados por agentes da Coreia do Norte para capturar refugiados cristãos do norte,” revela David Atkinson. Situação melhor na China Na República Popular da China, mais de 50 milhões de chineses estão a praticar a sua fé cristã e a situação dos cristãos é claramente melhor do que na Coreia do Norte. No entanto, muitos cristãos também preferem permanecer incógnitos na China. Eles não querem se conectar às igrejas controladas pelo Estado, arriscando-se à perseguição, à opressão e à prisão. Foi o que vivenciou o pastor Yun. A partir de 1984, ele ficou preso por quatro anos como um suposto contra-revolucionário em um campo para a chamada "reeducação por meio do trabalho". Em 1991, ele foi novamente enviado para o campo de trabalho. Desta vez, pesavam contra o pastor acusações de "perturbar a ordem social", e de "subversão". A terceira prisão ocorreu em 1997. Desta vez, ele se aventurou numa fuga e escapou. Finalmente, o pastor Yun encontrou asilo na Alemanha. Sua biografia "O Homem do Céu" foi traduzida em 50 idiomas e é um dos livros cristãos mais vendidos em todo o mundo. Yun era o chefe de uma igreja doméstica protestante na província de Henan, localizada no norte da China. Essas paróquias se contrapõem às igrejas estatais. Igrejas ilegais O Movimento Patriótico da Tríplice Autonomia Igreja Protestante e a Associação Patriótica Católica Chinesa foram estabelecidos na década de 1950, sob a direção do Partido Comunista da China para isolar as igrejas no país e controlá-las tão completamente quanto possível. Para muitos cristãos, esta interferência política vai longe demais. Também Yun não queria ter nada a ver com esta igreja. Segundo o pastor, "não eram os cristãos que conduziam as igrejas oficiais, mas comunistas que acreditam no marxismo-leninismo". Cristãos como ele, fundaram e até hoje fundam as igrejas domésticas – na clandestinidade. Estas igrejas não são registradas junto ao governo, nem reconhecidas oficialmente e, portanto, são ilegais. A igreja doméstica Shouwang em Pequim, por exemplo, tem mais de 1.000 membros. Foi tolerada por muitos anos. Mas desde 2011, os membros vêm sendo intimidados e perseguidos. O pastor e os anciãos estariam há mais de dois anos em prisão domiciliar, relata Bob Fu, fundador da China Aid, uma organização contra a perseguição de cristãos com base nos Estados Unidos. Nem mesmo as igrejas protestantes oficialmente reconhecidas são poupadas. Recentemente, foi preso o pastor Zhang Shaojie, presidente da Igreja Patriótica local em Puyang, uma cidade na província de Henan. Ele tentava proteger os fiéis da arbitrariedade e da perseguição das autoridades. Além disso, há cada vez mais conflitos entre a Igreja e as autoridades por causa dos reassentamentos forçados, da corrupção e de outras injustiças. Cresce o número de cristãos Apesar de todas as dificuldades, o número de cristãos na China está aumentando. Alguns autores calculam em mais de 100 milhões. De acordo com o Escritório Nacional de Assuntos Religiosos, há cerca de 23 milhões de chineses oficialmente registrados como protestantes. Além disso, segundo um estudo realizado pela Academia Chinesa de Ciências Sociais, pelo menos 45 milhões de protestantes estão organizados em igrejas domésticas. O número de católicos na China é estimado em cerca de 12 milhões, diz o padre Anton Weber da organização católica China-Zentrum (Centro-China, na tradução literal), no estado alemão da Renânia do Norte-Vestefália. O número de católicos registrados deve ser em torno de seis milhões, tão alto quanto o das igrejas católicas clandestinas. A China não tem relações oficiais com o Vaticano. E oficialmente, a liderança do Papa sobre a Igreja Católica da Associação Patriótica da China não é reconhecida. Mas, o padre Weber considera isso, no entanto, pura teoria uma vez que "eles rezam pelo Papa, querem permanecer fiéis e não apenas entre os católicos clandestinos, mas também entre os católicos das igrejas oficiais." Perseguições a clérigos Isto não foi sempre assim, enfatiza o padre Anton Weber. Houve um tempo em que não era permitido rezar pelo Papa. Quem desobedecia ou não se submetia, era perseguido, diz ele. As perseguições eram dirigidas principalmente contra os clérigos das igrejas cristãs, ou seja, contra padres e bispos. De acordo com o padre, "alguns são condenados a alguns anos de prisão, ou são abusados ou colocados sob prisão domiciliar, ou obrigados a fazer cursos de formação similares a uma lavagem cerebral." Vários padres e bispos – sobretudo das igrejas clandestinas – estão atualmente sob custódia, afirma o padre Weber. Recentemente, Dom Liu Guandong da Diocese de Yixian morreu com mais de 90 anos de idade. Ele passou 30 anos na prisão. Em 1981, foi libertado, mas permaneceu sob forte observação. Desde 1997, estava escondido. "Liu rejeitou qualquer tipo de compromisso com as autoridades," conta Weber que conhece muitos destinos semelhantes. A reforma da economia e a consequente abertura da República Popular da China levou a um certo abrandamento. Mas, quanto à política religiosa do Partido Comunista, Bob Fu da China Aid não vê uma mudança fundamental. Atualmente, o pastor Yun vive em Frankfurt. Ele mantém contato com sua igreja doméstica evangélica na província de Henan pela internet, porque não pode voltar para a China.