Contraste | Deutsche Welle
O programa “Contraste” aborda assuntos de política e direitos humanos, questões de desenvolvimento e meio ambiente.
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“O 25 de Abril nasceu na Guiné”, diz Manuel dos Santos
"Manecas" foi um dos responsáveis pela inovação bélica que acabou ...
"Manecas" foi um dos responsáveis pela inovação bélica que acabou dando um rumo inesperado à guerra de libertação. Ele lembra que soldados de ambos os exércitos confraternizaram depois da guerra. O ex-ministro das Finanças da Guiné-Bissau, Manuel dos Santos, era um estudante cabo-verdiano de Engenharia em Lisboa quando decidiu se juntar às fileiras do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC). Manecas, como era conhecido, iniciou em postos de menor hierarquia na guerrilha. Em 1973, já era o “comandante Manecas” quando entrou para a história da guerra de libertação da Guiné por ser protagonista de uma inovação bélica que mudou o rumo do conflito. Chefiou um grupo de guerrilheiros que foi para a Criméia, na então União Soviética, para aprender a usar os mísseis antiaéreos Strella. Nesta entrevista à DW África, Manecas fala sobre o poder de fogo da guerrilha, explica como o PAIGC acabou influenciando na “Revolução dos Cravos” e lembra de confrontos cruciais para a libertação da Guiné. DW África: Era um estudante cabo-verdiano em Lisboa que acabou se tornando um comandante na Guiné? Manuel dos Santos (MS): Podemos dizer que o PAIGC era uma espécie de meritocracia. Você não chegava a postos de responsabilidade sem dar provas primeiro. Eu cheguei a ser um dos comandantes aqui na Guiné, mas comecei em baixo. Comecei mais baixo do que se estivesse indo para o exército português. Com as habilitações que eu tinha, não sendo particularmente covarde, fui subindo degrau a degrau até ser um dos seis comandantes principais da [guerra de libertação] da Guiné. DW África: O senhor é conhecido também por uma inovação bélica dos guerrilheiros. MS: Em 1973, eu era o chefe de um grupo que foi treinado na União Soviética para manusear armas antiaéreas eficientes - foguetes. Em qualquer anti-guerrilha, a força aérea é decisiva para o adversário. O que nós fizemos foi terminar com a supremacia aérea portuguesa na Guiné. Isso mudou o curso da guerra de uma maneira impressionante. A partir do momento que nós começamos a usar estas armas antiaéreas, o exército colonial português ficou completamente na defensiva. Depois de março de 1973, o exército português terá feito três ou quarto operações ofensivas, nada mais. Isso mudou o papel dos beligerantes. Nós passamos a ter a capacidade ofensiva que deixaram de ter e passamos de fato a dominar o terreno. DW África: Como foi a negociação para a obtenção destes mísseis? MS: Isso eu não posso dizer porque foi [Amílcar] Cabral que nos conseguiu. Ele conseguiu os 2.972 e nós fomos para a União Soviética para treinar. Quando nós chegamos à Bissau, já depois da morte de Cabral, utilizamos os mísseis e creio que com alguma eficiência. DW África: O que significou a ascensão do general António de Spínola aqui na Guiné? MS: Eu penso que o general Spínola chegou à Guiné com um projeto de fazer uma anti-guerrilha moderna. Isto não era o caso do seu predecessor que utilizou exclusivamente a repressão pura e dura sobre os habitantes das nossas regiões libertadas, tentando contrariar as ações de nossas forças armadas. O general Spínola veio com uma estratégia de anti-guerrilha total. Quer dizer, havia o elemento armado, o elemento de guerra, o elemento político e o elemento social. Ele introduziu todos estes elementos no conflito aqui na Guiné e por isso nos criou algumas dores de cabeça. Nós pensamos que ele foi, de longe, o melhor comandante-chefe português que passou aqui na Guiné. É óbvio que tivemos capacidade de resposta à altura dos desafios que o general Spínola nos apresentou. E quando nós conseguimos os mísseis antiaéreos, o general Spínola, que eu acho que era um homem inteligente, deu-se conta que a solução para o conflito não poderia ser militar, mas negociada. DW África: Alguns autores, quando abordam o conflito, comparam a resistência da guerrilha ao que os norte-americanos enfrentaram no Vietname. Tem sentido? MS: [A Guiné] foi a colónia onde a guerra foi mais violenta e mais eficiente por parte dos guerrilheiros nacionalistas. Eu creio que ninguém tem dúvidas disto. A partir do momento que nós conseguimos estas armas antiaéreas, deixando o exército português completamente na defensiva [surgiu uma situação] inimaginável para qualquer exército colonial ou qualquer exército europeu. De facto, nós teríamos sido a ex-colónia cujo combate foi decisivo para que acontecesse o golpe de Estado em Portugal e depois a libertação das coló nias. O golpe de 25 de Abril nasceu aqui. DW África: Como? MS: Se você enumerar, todos os militares portugueses que tiveram uma ação preponderante no golpe de Estado passaram por aqui. Otelo Saraiva de Carvalho, Vasco Lourenço, António de Spínola, Salgueiro Maia e tantos outros passaram por aqui na fase final. Foi aqui que eles adquiriram consciência que o exército deles estava a perder uma guerra, o que nenhum exército gosta. Foi aqui que eles aprenderam também que era necessário encontrar uma solução para este conflito, que não fosse a perda da guerra. Aí, surge o 25 de Abril. O 25 de Abril nasceu na Guiné. DW África: Havia o contato desarmado entre os soldados de ambos os lados? MS: Este contato foi posterior ao 25 de Abril. Foi interessante que, após o 25 de Abril, tanto os nossos soldados como os portugueses fizeram o possível para se encontrarem no terreno. Em maio e junho já estávamos a nos encontrar no terreno. A partir daí se tornava impossível para o colonialismo português continuar com a guerra na Guiné. O general Spínola teve uma tentativa, não sei se de continuar a guerra, mas de arranjar instrumentos de pressão ameaçando com a continuação da guerra. Neste momento, no entanto, houve um manifesto escrito pelos oficiais portugueses na Guiné, assinado por mais de mil oficiais portugueses que se encontravam aqui, a dizer que a guerra havia acabado. DW África: Alguns autores insinuam que a morte de Amílcar Cabral teria destacado algum tipo de divisão entre cabo-verdianos e guineenses. O senhor concorda? MS: Onde estão pessoas de origens diferentes pode haver conflitos mais ou menos importantes. Eu não acredito muito na importância deste conflito na morte de Amílcar Cabral. Ele nasceu na Guiné e era filho de pais cabo-verdianos. Eu estive longos anos aqui nas forças armadas, normalmente sendo o único cabo-verdiano em uma unidade, em lugar de comando. Estes problemas surgem nos locais onde começa a disputa pelo poder. Nas forças armadas eu nunca tive o menor problema por ser mestiço e cabo-verdiano. DW África: O senhor aceita a versão da morte de Amílcar Cabral? MS: As pessoas que mataram Cabral, que deram o tiro, a gente sabe quem foi. Mas o mandante... aí é que está o problema. Quem poderia aproveitar a morte de Amílcar Cabral? Parece-me óbvio. O PAIGC não poderia aproveitar isto. Os únicos que poderiam tirar algum proveito disso eram os portugueses. Há muitos argumentos para afirmar isto. Os tipos que estavam no grupo que matou Cabral tinham estado presos no Tarrafal e depois foram “virados” pela sua detenção e enviados para Conacri. Eu não tenho dúvida nenhuma que o mandante situa-se nas estruturas do poder colonial. Pode haver cúmplices fora, mas o mandante está ali. DW África: Há algum confronto que tenha lhe marcado especialmente no comando? MS: Os últimos de 1973, em Guidadje. Nesta altura, o comandante da frente não estava e eu comandei toda a operação. Envolvia muitos efetivos e eu pedi a coordenação. De fato, saímos vitoriosos deste conflito. DW África: O que foi decisivo? MS: A inexistência de aviões e aquilo que era uma das grandes vantagens do PAIGC: tinha soldados com cinco, seis, sete ou oito anos de guerra nas costas. Uma experiência que não se adquire no treino. Nós tínhamos unidades aguerridas e unidades de elite que faziam frente com grande vantagem à tropa colonial. As únicas tropas coloniais que nos enfrentavam de facto no terreno, e mesmo assim não em vantagem, eram os comandos e os fuzileiros. DW África: De onde vinha o suporte bélico? MS: Da União Soviética fundamentalmente. Nós estávamos bem equipados com armas modernas de infantaria. Tínhamos o melhor que poderia ser usado naquela altura. Em termos de infantaria, nós estávamos mais bem equipados do que o exército português. Nós só tínhamos armas automáticas Kalashnikov e bazucas RPG-7. Esse era o nosso armamento standard.
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Lúcio Soares, de professor a negociador da paz
O ex-chefe do Estado-Maior do Exército guineense, Lúcio Soares, fez ...
O ex-chefe do Estado-Maior do Exército guineense, Lúcio Soares, fez parte da delegação do Comité Executivo da Luta do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC). A partir de maio de 1974, Lúcio Soares participou de negociações com representantes do Governo português, em Londres e em Argel, para o cessar-fogo e o reconhecimento da independência da Guiné-Bissau. Impasses interromperam as negociações. “Eles queriam um governo novo, com a ideia delea,” lembra. Em 26 de agosto de 1974, integrava a delegação do PAIGC que chegou a um acordo com a delegação portuguesa sobre o conflito. Portugal reconhecia a Guiné-Bissau como um Estado soberano. Lúcio Soares foi comandante da guerrilha na frente Norte. Antes de ingressar no movimento de libertação, era professor. Nesta entrevista à DW África, Soares recorda do momento em que foi recrutado e de alguns detalhes do processo de negociação que resultou no reconhecimento da independência da Guiné. DW África: O que estava em jogo nesta negociação? Lúcio Soares (LS): Não havia tanta coisa em jogo porque nós já havíamos proclamado a nossa independência antes do 25 de Abril. Nós fomos para (as negociações) na intenção de que os portugueses reconhecessem o Estado existente. Mas, no início, não foi o caso. Eles tentaram nos convencer de que era necessário fazer um governo novo com a ideia deles. Nós resistimos a isto porque não poderia ser. Isto resultou que nos primeiros encontros nós não conseguimos chegar a um acordo. Marcamos (uma ronda) em Argel onde foram adotados passos mais seguros e eles acabaram por aceitar que era necessário apenas reconhecer o Estado existente e formalizar uma transição. Eu penso que muitos políticos portugueses não estavam preparados para a independência como tal. Estavam fartos da guerra, isto é verdade. Ninguém quer a guerra, mas as circunstâncias levam as pessoas à guerra. No nosso caso, nós fomos obrigados, mas não queríamos a guerra. DW África: O que lhe marcou nesta negociação? LS: Nós tínhamos apoio de alguns países amigos, como a Argélia. Apoiaram-nos com instalações de hotel e técnicos. A comunidade internacional também nos apoiou muito. Todo mundo estava interessado na libertação dos povos colonizados. DW África: Como ingressou na guerrilha? LS: Eu era professor primário. Saíamos para uma missão e o carro foi interceptado por um grupo da guerrilha. Mandaram parar e explicaram que eram mesmo guerrilheiros e que estavam no mato a lutar. Queriam explicar que era necessário lutar para libertar o nosso país. Eles disseram que quem quisesse ficar, poderia ficar. Quem não quisesse, poderia ir embora. Então cinco voluntários ficaram e eu era um deles. DW África: Um soldado era capaz de mobilizar... LS: Não é um simples soldado, é uma pessoa preparada. Um guerrilheiro preparado pelo partido para integrar a luta e mobilizar as pessoas do interior para estarem preparados para o que der e vier. Mesmo uma pessoa lá do campo tinha noção que era necessário se preparar para a guerra. E, que era uma guerra justa, não era uma aventura. E toda a gente estava interessada em (ingressar na guerrilha) desde que fosse bem explicado. Era fácil de (convencer a) integrar.
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Carmen Pereira e a guerra das mulheres
Carmen Pereira tornou-se o símbolo feminino da luta pela libertação ...
Carmen Pereira tornou-se o símbolo feminino da luta pela libertação da Guiné. Trata-se da primeira mulher a ocupar a presidência de um país africano e única Presidente da História da Guiné-Bissau. Carmen Pereira ingressa na luta pela libertação em 1961, após o seu marido fugir para a Guiné-Conacri, perseguido pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado - Direção Geral de Segurança (PIDE/DGS). Começa a assumir responsabilidades no movimento quando chega a Conacri. Deixou seus filhos na capital do país vizinho para acompanhar mulheres guineenses das tabancas para uma formação de um ano em Kiev, na antiga União Soviética. Nesta entrevista à DW África, Carmen Pereira lembra da abertura dos hospitais para atender à população e aos guerrilheiros, da parceira com os médicos cubanos, da participação ativa no recrutamento de mulheres para a frente Sul. Também oferece um testemunho sobre um dos momentos mais tristes do conflito, quando bombas napalm e de fósforo branco foram jogadas sobre as comunidades do interior. DW África: A senhora recebeu um grupo de mulheres guineenses que deixaram suas casas e se juntaram à guerrilha na base de Conacri. Como foi a preparação destas jovens para o conflito? Carmen Pereira (CP): Nesta altura, a então União Soviética ofereceu bolsas para 30 raparigas para a formação de enfermeiras, mas não havia ninguém para levar estas raparigas [para a União Soviética]. Sozinhas não poderiam ir porque muitas não percebiam nem o crioulo. Não sabiam ler. Saíram da tabanca. Em uma conversa com um grupo de pessoas, eu comentei que se não fossem os meus filhos, eu mesma levava estas meninas. Nesta mesma tarde, alguém veio até mim, pedindo para que eu as acompanhasse para a União Soviética. Eu relutei. Camarada Cabral perguntou-me então: “Quem tu amas mais: a pátria ou teus filhos? Onde é que está o teu amor?” Eu respondi: “a minha pátria”. E ele: “então, tens que embarcar amanhã de manhã.” Acredita? Eu tive que embarcar para levar estas raparigas à União Soviética para o curso de um ano. DW África: Como era o recrutamento e mobilização? CP: Funcionava muito bem porque fazíamos uma reunião [com as comunidades] e eu convidava: “Temos que fazer isto! Temos que trabalhar! Temos que lutar! Temos que ir à frente para mostrar aos homens que nós também somos capazes!” Daí, abria-se hospitais com médicos cubanos e jovens raparigas que aprendiam primeiros-socorros. Depois, criamos as brigadas sanitárias. Elas que saíam com o chefe para assistir à população. Na altura, as pessoas não conheciam o hospital. Eram remédios com ervas e folhas. A partir dali, começaram a conhecer a Brigada Sanitária, que fazia campanhas. Depois, mandavam [os casos mais graves] para o hospital. Os militares também mandavam os feridos para o hospital, onde existiam enfermeiras já formadas para os blocos operatórios. Elas davam assistência junto aos cubanos. Mais tarde, eu fui indicada para ocupar o cargo do comissário político. [Acumulei] as duas funções: a saúde e a política. O comissário tinha que explicar o que o PAIGC quer, as razões da guerra contra o colonialismo. Também tinha que explicar porque teríamos que recolher o material [deixado pelas tropas portuguesas em combate]. O avião bombardeava, os portugueses vinham de carro ou de barco com muito material, mas nós não tínhamos nada. Tínhamos que carregar na fronteira com a [Guiné-Conacri] e transportar de lá até os nossos combates todo o material bélico e mantimentos. [Convencer a população a ajudar voluntariamente] era o trabalho do comissário político. [As pessoas] iam com boa vontade, carregavam os materiais, os medicamentos, fardos de roupa e depois os militares é que dividiam [entre as frentes]. Era uma distância longa, caminhando toda a manhã e tarde. DW África: O que lhe marcou nos bombardeamentos? CP: Eu vi pessoas queimadas com o napalm. Há lugares preservados pela população com as marcas dos bombardeamentos para quem quiser ver. Lançavam as bombas napalm sem ter cuidados com as crianças. Quantas pessoas morreram? Em uma visita às Nações Unidas, Cabral levou uma mulher que perdeu um braço e o bebé que carregava perdeu uma perna. Também levou um homem que teve um lado da cabeça queimado. Ele teve que levar estas pessoas para que os integrantes das Nações Unidas acreditassem que os portugueses já estavam lançando bombas napalm. No caso do fósforo [branco], eu vi em uma tarde. Atacaram uma tabanca por volta das seis horas, seis e meia da tarde, quando as pessoas voltavam às suas casas. Aquilo é um caso terrível de ver: a pessoa ali, deitada, a gritar. Pareciam pirilampos porque aquilo penetra até os ossos, deixando uma queimadura. O médico deita água oxigenada e reação é um fumo grande. Consome [a pessoa] até matar. Nesta noite mesmo eu mandei uma carta à Conacri para avisar que já estavam a utilizar o fósforo branco. Cabral mandou uma delegação para fazer a inspeção e tudo foi confirmado por um médico cubano. DW África: Falando de personalidades. O líder Amílcar Cabral, para começar. CP: Foi um grande líder, foi um homem honesto e capaz. Fez a luta com seriedade e capacidade e, por isso, o mataram. Ele castigava, mas sabia perdoar. Os perdoados foram os elementos que o mataram. DW África: E como era o combatente Nino Vieira? CP: Ele era o comandante da frente Sul - um guerreiro extraordinário, um guerreiro de grande conhecimento. [Nino] era corajoso. Atacava sem sentir medo. Quando recebemos carros de combate, ele entrou com os carros blindados até o quartel de Bedanda. Os portugueses ficaram surpresos porque ele entrou no quartel, bombardeou e seguiu até a fronteira porque não havia onde deixar o blindado. Foi o autor da histórica tomada do quartel de Guiledge, onde os portugueses tinham tudo. Era um local altamente fortificado. Ele disse para mim: “eu vou, mas tu tens que garantir a retaguarda com médicos e enfermeiros por causa dos nossos camaradas.” Mas não fiz nenhum trabalho. Uma mulher chegou à base informando que era necessário parar de mandar mais armas porque os portugueses já haviam corrido. Avisamos Nino que, ao invés de mandar mais armas, era apenas necessário mandar pessoas. Este foi o ataque “Amílcar Cabral”. DW África: Há nomes que deveriam ter maior destaque nesta história? CP: Temos a Titina Silá. Ela foi assistir ao funeral de Cabral e na volta foi atacada. Ela andava sempre equipada com botas, cinto, pistola. Caiu num rio e afundou com o peso do equipamento. Os restos dela estão onde estão também os restos de Cabral, Chico Mendes, Osvaldo Vieira – que eram grandes combatentes. Osvaldo caiu em uma emboscada, mas antes de morrer escreveu para Cabral com o seu sangue: “eu sei, vou morrer porque a ferida que tenho não vai sarar. Mas continua com a guerra e faz com que tomem a independência e que os portugueses voltem a para a terra deles.” Para a namorada, também com sangue, ele escreveu: “não estou a sentir-me bem. Sei que vou morrer. Encontramo-nos na eternidade”.
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Família dá lição de luta por igualdade racial e solidariedade na África do Sul
Após 20 anos do fim do Apartheid, a desigualdade social ...
Após 20 anos do fim do Apartheid, a desigualdade social e racial que persiste no país estimula uma família branca a buscar integrar-se à comunidade negra. Joanesburgo ainda tem traços fortes de desigualdade racial. Até 1994, negros e bancos sul-africanos viviam estritamente separados. Cada grupo tinha a sua entrada específica em prédios, usava transporte público diferente e vivia em regiões distintas. Tudo obedecia à segregação racial do Apartheid. Quando o regime racista terminou, há 20 anos, todos receberam o mesmo status legal, independente da cor da pele. Entretanto, a realidade hoje é que brancos e negros ainda continuam vivendo separados na África do Sul – em mundos distintos. Uma família branca, no entanto, está trabalhando para mudar esta realidade. Os Brankens deixaram a sua imensa casa com piscina e jardim para viver em Hillbrow, um bairro de lata na região urbana de Joanesburgo. A área é conhecida pela elevada freqüência de crimes. Trata-se da única família branca a morar na região. A Fortaleza Kaptein Street está na região central de Joanesburgo. Pilhas de lixo, esgoto à céu aberto e ratos a cruzarem a rua. Vendedores ambulantes oferecem relógios, óculos escuros e capas de telefones móveis à equipe de reportagem da DW, que estava a caminho da casa dos Brankens. O problema é que eles também poderiam ser assaltantes armados. A vida vale pouco na África do Sul. Uma pessoa pode ser morta por um telefone em uma rua de Hillbrow. É por causa disso que a mãe Trish Branken e a filha Rachel geralmente buscam seus visitantes nas proximidades do seu apartamente e invariavelmente, as pessoas já estão bastante ansiosas ao encontrá-las. "Você sabe que eu costumava ficar bem nervosa. Eu acho que é porque eu não conhecia a área. Mas eu acredito que, uma vez que você conhece as ruas, você começa a ficar cuidadosa com algumas coisas e eu, na verdade, não tenho qualquer preocupação hoje”, diz Trish, de 42 anos. Ela caminha confiante pelas ruas do bairro. Seus cabelos longos e loiros escorrem sobre os ombros. Ela conduz a reportagem cuidadosamente para dois portões de metal que dão acesso a um prédio alto e acinzentado. No local, mora a família Branken. Ela informa para o segurança sobre a visita e pede para que o portão seja aberto. Apenas inquilinos registrados tem entrada permitida. Dois homens fazem a segurança da entrada do edifício. As portas de metal abrem quando as digitais da pessoa são reconhecidas. É um dos poucos prédios em Hillbrow, que são considerados relativamente seguros. Há abastecimento de água e eletricidade. O lugar é bastante limpo. Nova atmosfera Rachel tem 11 anos e surge na escada do apartamento no terceiro andar. "Gosto daqui porque eu tenho muitos amigos. As pessoas simplesmente aparecem e você nao precisa marcar encontros“, explica a pré-adolescente. O lugar é bem diferente de onde viviam no passado - uma casa com seis quartos, um imenso jardim em um próspero suburbio branco no norte de Joanesbrugo. Na nova casa, o cheiro de comida e o som das crianças brincando está na atmosfera. Uma estreita passagem leva até outro portão de metal – a entrada da residencia da família Branken. Trish diz que a campainha sempre é roubada. Agora, eles tem que se fazer ouvir de alguma forma, geralmente fazendo algum barulho ou batendo a porta. O seu marido Nigel abre a porta. Nigel é um homem muito alto. Ele se enconsta no sofa enquanto o seu filho mais novo brinca no chão. Próximo a porta, Rachel e Daniel pulam na cama. A mãe pega dois de seus seis filhos e sai de novo de casa para ir ao médico. Por dois anos, os Brankens vivem aqui e os filhos dividem um quarto. Mas Nigel diz que todos gostam de compartilhar. "Há muitos benefícios em viver em uma comunidade como esta. Nós começamos um periodo de simplificar as nossas vidas há cinco ou seis anos e agora nós vivemos com menos de um quarto do que vivíamos", explica o pai de família. Para ele, viver nesta nova região, gastando menos dinheiro, já lhe eu uma lição de vida. "Honestamente acredito que se você lida com pouco você acha que você tem ainda mais. Você acaba descobrindo o que é mais importante. A coisa mais importante de se fazer na vida com as melhores coisas que se tem é compartilhá-las." Uma vez por semana a família prepara pilhas de sanduíches de pasta de amendoim e cozinha litros de sopa para distribuir nas esquinas do bairro com os vizinhos. Nigel explica que esta é uma forma de fazer com que as crianças aprendam a ser solidárias e a agir com responsabilidade. Mesmo assim, ele acrescenta que seus filhos se adaptaram naturalmente ao ambiente em que vivem. O melhor amigo do seu filho de nove anos, Jordan, vem de uma família com muitos problemas. Sonhos e mais sonhos O pai deles deu a todos veneno de rato e também ingeriu. Tentou matar a todos. Existe uma medida judicial que o impede de aparecer na vizinhança. A mãe é profissional do sexo – trabalha às noites e dorme durante o dia. Assim, as crianças não podem circular pelo apartamento durante o dia e ficam sozinnhos à noite. "Era óbvio que o menino não teria uma festa de aniversário e não ganharia nenhum presente. Jordan é um dos seus melhores amigos. Então ele decidiu que vai guardar dinheiro e um dia eles irão fazer uma festa para este menino. Como pai, a gente só diz vai: é pra isto que nós estamos a viver", diz Nagel, admirado com a iniciativa do filho. Mais de 80 por cento da população não tem seguro saúde e depende das institutições públicas para ser atendidas. No entanto, a maioria dos brancos paga por assistência médica, o que lhes dá acesso a medicos e clínicas privadas. Para viver como a maioria, os Brankers cancelaram seus benefícios medicos. "Nós queremos nos identificar com a realidade e o estilo de vida das pessoas que estão a nossa volta. Assim, eu acho que nós temos aprendido mais. Até mesmo hoje, sentando com pessoas normais, passando pelas mesmas coisas. Você constrói suas relações com as pessoas desta forma", explica Trish. Ela costuma fazer amigos nas filas das clínicas públicas. "No final das duas ou três horas de espera, você já fez 10 amigos e sente que você consegue entender melhor as pessoas porque você vive o que todos vivem", constata. Legalmente, negros e brancos são iguais na África do Sul, mas econmicamente, não. Conforme dados do Governo, 36 por cento da popualção vive abaixo da linha da pobreza - 1 por cento deste grupo é branco. Centro de aprendizagem Trish está a caminho do que a família chama centro de apredizagem - em um apartamento no andar térreo. "É um apartamento que usamos como ambiente educacional seguro para as crianças da área. Temos muitos livros, brinquedos, quebra-cabeças, jogos eletrônicos. Alguns equipamentos artísticos e convencionais", descreve. As aulas de música de Trish para as crianças da região são muito populares. Ela descreve o ambiente como seguro e saudável. Para a mãe da família Branken, ás vezes, na região, as crianças estão expostas a situações que não são bem apropriadas a idade que têm. Ou às vezes elas são vítimas mesmo de abusos. "Então esperamos que ao virem até aqui, elas tenham contato com coisas positivas que façam elas se sentirem crianças normais. E que, no final disto tudo, elas sejam capazes de escapar de algumas situações que vivem em casa, que não são muito agradáveis", esclarece Trish. Trish e seu marido ainda ajudam adultos a montarem negócios economicamente viáveis. Com o apoio de amigos, eles estão desenvolvendo um sistema de microcrédito. Como a maioria das pessoas em Hillbrow são desempregadas, não podem ter acesso a crédito normal. Assim, a ideia dos Brankens acaba ajudando. Geralmente as pessoas param em frente ao prédio para falar com eles. Hoje uma jovem está esperando do lado de fora. Ela foi buscar as suas duas meninas que estão no centro de aprendizagem. Maureen é mãe solteira. Ela percebe que as coisas estão melhorando desde que a família Branken se mudou para o bairro. "É muito bom conviver com eles aqui. Eles estão ajudando as crianças com atividades extras e mantendo-nas seguras a maior parte do tempo." Um dos seguranças do edifício juntou-se a Maureen e acrescentou que a primeira impressão que teve logo que a família chegou, é que ela iria se isolar da comunidade. "Mas quando eu vi eles virem para este lado, eu pensei: uau, parece que está começando a haver um bom relacionamento entre brancos e negros aqui." Ele deseja que mais pessoas brancas mudem para Hillbrow porque isto poderia ser benéfico na luta contra o preconceito. "Porque no final nós temos que pensar que somos todos seres humanos, usamos o mesmo oxigênio. Nós somos iguais, mas é somente com a cor da pele. No final, nós somos todos seres humanos." Diferenças sociais Três andares acima, Nigel está na sacada cheia de plantas e roupas sujas. Olhando para os prédios em volta, ele percebe janelas quebradas, ausência de iluminação pública e sujeira. A média salarial das famílias na África do Sul chega a 300 euros. Nigel, que estudou serviço social e presta consultoria na universidade, ganha algo em torno de oito vezes a média salarial sul-africana. Apesar do fato de sua família estar muito envolvida na comunidade, a diferença salarial é problemática em uma área como Hillbrow. "Havia alguns jovens que tentaram me roubar. Havia um homem no portão de segurança quando eu estava colocando o meu carro dentro da garage e outro veio até o carro com uma arma. Manteve-me sob à mira, pedindo meu telefone móvel", lembra. Estas experiências ruins, mas não impedem que Nigel e sua família continuem com o seu objetivo. Pelo contrário: parece que isso dá mais força e energia para que os Brankens continuem dedicados a lutar pelo que acreditam.
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Carlos Correia: a testemunha do "Massacre de Pidjiguiti"
O ex-primeiro-ministro guineense, Carlos Correia, é uma das memórias vivas ...
O ex-primeiro-ministro guineense, Carlos Correia, é uma das memórias vivas do episódio histórico que, para muitos, marca o início da guerra de libertação da Guiné: o "Massacre de Pidjiguiti". Em 1959, Carlos Correia ajudou a mobilizar trabalhadores do porto de Bissau para uma greve por melhores salários - que aconteceria no dia 3 de Agosto daquele ano. A violenta repressão ao movimento fez 50 mortos e uma centena de feridos. Carlos Correia era funcionário da Casa Gouveia, um dos maiores comércios de Bissau, ligada à Companhia União Fabril de Portugal. Ele ajudou a mobilizar o grupo de trabalhadores grevistas, viu corpos sendo retirados do porto, mas diz que não esteve diretamente envolvido no episódio. Nesta entrevista à DW África, Carlos Correia lembra a situação dos trabalhadores guineenses na época e as motivações para o levante pacífico que acabou sendo o estopim para a escalada de acontecimentos que levou à luta armada. O ex-primeiro-ministro também revela o esforço de alfabetização em massa do movimento de libertação. A formação não tinha como objetivo apenas instruir ideologicamente guerrilheiros, mas também dar-lhes condições de manusear o armamento importado. DW África: Como o senhor se salvou do massacre? Carlos Correia (CC): Eu não estive metido no barulho. Eu era um funcionário da Casa Gouveia. Eu aprendi muito com os marinheiros e com aqueles trabalhadores simples da Casa Gouveia. Eu era empregado no setor de contabilidade da Gouveia. De vez em quando, eu era chamado para fazer o pagamento dos trabalhadores em Bissau. Constatava que alguns marinheiros recebiam salários muito baixos e se socorriam com vales. Isto pode parecer, mas não era favorável aos trabalhadores porque recebiam parte do salário e um complemento com géneros alimentícios e outras mercadorias. Eles acabavam se tornando um “cliente certo” da Gouveia. Tiramos lições destas situações vividas pelos marinheiros, o que nos mobilizou politicamente. Neste dia, quando soou o alarme eu nem saí com medo de perder a calma. Depois da ordem de serviço, eu saí. Era o momento em que estavam retirando os corpos e colocavam nos caminhões para levar ao hospital. Foi aí que eu tive um “desabafo”. Os polícias vieram me provocar. Eu reagi e fui preso. Portanto, eu não estive diretamente envolvido, mas tinha contato com os marinheiros e conversávamos muito. Como ali estava um jovem também de família simples, eles tinham confiança em mim. DW-África: O senhor foi perseguido depois. CC: Como o gerente da Gouveia era chefe do partido nacional, futebolista e jogava numa equipa cujo presidente era o chefe da polícia, acabei sendo libertado no dia seguinte. Os colonialistas pensaram que os marinheiros poderiam organizar outra mobilização. A PIDE sede questionou os seus representantes em Bissau, se havia um indivíduo que se realçou naquela situação. Eles deram ordem para que eu fosse preso. O camarada Aristides (Pereira), que era chefe dos correios, recebia estas transmissões secretas e mandou me avisar. Eu fugi. DW África: O que mudou em sua vida a partir desta situação? CC: Houve uma reunião aqui em Bissau nesta altura, quando se reorientou a política do PAIGC. Definiu-se que era preciso deixar de lado as ações nas grandes cidades porque o colonialista coordenava as suas forças nestes locais. E também era importante que todos se preparassem para todas as possibilidades. Esperar o melhor, mas se preparar para o pior. Ao invés de continuarmos a fazer reivindicações enfrentando a força colonial nos centros urbanos, era necessário preciso se retirar para o interior para se preparar para o eventual desenvolvimento da luta armada, caso o colonialista não aceitasse as nossas reivindicações políticas e o que foi definido na Assembleia Geral da ONU de 1960 quando se definiu a auto-determinação dos povos. Quando eu fugi para Conacri, muitos outros jovens também saíram. Muitos estavam a procurar emprego em um país africano independente, outros tinham razões políticas. Nesta altura, Amílcar constituiu um grupo para dar formações políticas e eu o ajudava. DW África: A luta armada exigiu que todos adquirissem conhecimento técnico rapidamente. CC: Quando se começou a dominar o território este problema persistiu. Por volta de 90 por cento da população era analfabeta. Para manusear as armas que tínhamos, era necessário saber ler. Então, foram criadas escolas, sobretudo depois do Congresso de Cassacá, em 1963. O congresso definiu também a criação de hospitais para tratar dos nossos feridos. Em 1965, foi criada a primeira escola-piloto – montada em Conacri, frequentada por filhos dos quadros que estavam em serviço em Conacri e outros alunos selecionados no interior da Guiné. Mais tarde foram criados semi-internatos no interior da Guiné. DW África: O que restava à ser discutido para que ocorresse um acordo de paz depois do 25 de Abril de 1974? CC: Era a independência. Havia a teimosia do governo português. Antes e ao longo de toda a luta armada, o PAIGC exigia que Portugal cumprisse o que havia sido definido pela ONU: o direito de autonomia ao povo guineense. Chegou-se ao 25 de Abril e, mesmo assim, Portugal não concedeu a independência. Foi preciso a negociação até o reconhecimento da independência proclamada unilateralmente em 19 de abril de 1973.
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Cientistas querem esterilizar mosquitos para combater doenças
Pesquisadores da Agência Internacional de Energia Atômica estão ocupados com ...
Pesquisadores da Agência Internacional de Energia Atômica estão ocupados com a vida sexual dos mosquitos para prevenir doenças como a malária. O sol está se pondo e os mosquitos estão saindo. Eles têm duas coisas nas suas pequenas cabeças – comida e sexo. Aqui está uma descrição bastante sutil, para menores de 18 anos, sobre o que geralmente acontece. A fêmea entra no enxame. Um macho a procura. A velocidade da batida das asas diminui até que ele a encontre. Usando suas longas patas dianteiras, ele agarra as patas traseiras da fêmea e se move sob seu abdome. Em menos de um segundo, os amantes estão conectados. Eles voam lentamente, à meia altura, pelo enxame. A cópula inteira pode levar menos de 16 segundos. O ambiente No laboratório de Siebersdorf, perto de Viena, na Áustria, cientistas da Agência Internacional de Energia Atômica estão se tornando intimamente familiarizados com a vida sexual dos mosquitos. Eles criam insetos e os submetem a radiações até que se tornem estéreis. Assim, eles estariam prontos para serem libertos na natureza. A atmosfera é de uma espécie de férias no Caribe no ambiente do laboratório: quente e úmido. O entomologista Jeremie Gilles aponta bastante orgulhoso para a caixa onde estão os insetos. "Eles estão em um ambiente bastante calmo e relaxado. Existem alimentadores com açúcar e machos e fêmeas estão nas caixas. As fêmeas vão a lugares como estes, após alimentarem-se de sangue, para desovarem", explica o pesquisador. Os machos gostam de açúcar. As fêmeas preferem o sangue quente de humanos ou animais. No laboratório, apenas os machos serão esterilizados. "É claro que nossos alvos são os machos porque nós não podemos libertar as fêmeas. Isto é muito importante porque os mosquitos fêmeas, além de serem incômodos, também transmitem doenças. Então nós libertamos somente os machos", diz Jeremie. Cenário de morte A reportagem se desloca por um labirinto de salas onde são realizados experimentos com reprodução em massa. É como se fossem orgias de mosquitos nutridas com sangue e açúcar, se você assim preferir descrever. "Pelo fato de nós não podermos ser picados todo tempo, nós temos de desenvolver alguma estratégia para dar sangue aos insetos. Então nós coletamos o sangue de matadouros e frigoríficos", revela Jeremie. A reportagem preferiu também não correr o risco de ter o próprio sangue doado para a experiência ou colocá-lo a disposição das fêmeas insaciáveis. Conforme a Organização Mundial de Saúde, a malária mata mais de 600 mil pessoas todos os anos e debilita um número ainda maior. A maioria das pessoas que contraem malária são crianças com menos de cinco anos que vivem na África subsaariana. A malária é a principal causa de morte em Angola e provocou no primeiro semestre deste ano 171 óbitos somente na província de Benguela, no litoral sul. Conforme técnicos do Programa de Combate à Malária, comparativamente a período igual de 2013, registou-se um aumento de mais 54 casos. A redução destas mortes parece ser motivo mais que suficiente para esterilizar os mosquitos. No entanto, o pesquisador Andrew Parker também tem outra razão. "Se nós conseguirmos atingir a erradicação local, não global, mas a remoção local das espécies, então é claro que não precisaremos de pesticidas. Então a tecnologia pode favorecer bastante a redução substancial do uso de pesticidas", afirma Parker. A mutação Nesta batalha global contra os mosquitos e as doenças que eles espalham, inseticidas são libertados ao ar com latas de aerosol, tratores e até mesmo motocicletas. Nos países desenvolvidos, onde o risco de transmissão destas doenças é baixo, a prática garante um vida mais confortável. Entretanto, na África, onde o Dr. Abraham Mnzava trabalha no controle da malária para Organização Mundial de Saúde, estes métodos podem salvar vidas. "Nos países onde a transmissão é bastante alta, eu acho que por um longo tempo as pessoas ainda continuarão confiando no uso de inseticidas, especialmente para o tratamento de mosquiteiros", revela Mnzava. Um desafio aos pesquisadores da área é a resistência aos fármacos pelo parasita que causa a malária. Tal resistência estendeu-se a várias regiões do sudeste asiático, o que ameaça "seriamente" os programas globais de controle da doença. A resistência à artemisina, principal tratamento contra a malária, generalizou-se nesta região depois de ter sido detectada pela primeira vez em 2005 no oeste do Camboja, onde anteriormente também foram detectadas resistências a outros tratamentos atualmente em desuso. A investigação, publicada na revista "New England Journal of Medicine", analisou 1.241 pacientes da estirpe mais perigosa do parasita em dez países da Ásia e África, e detectou uma resistência "estabelecida" no oeste e norte do Camboja, Tailândia, Vietname e leste da Birmânia. Conforme o pesquisador Jeremie, os mosquitos tornam-se cada vez mais resistentes aos inseticidas e também mudam seus hábitos. "Estão surgindo evidências de que estes mosquitos picam de manhã cedo, mesmo antes das dez da manhã. Nesta hora, as pessoas não estão protegidas pelos mosquiteiros. Então nós precisamos de novas ferramentas", constata Jeremie. Usar mosquitos em mosquitos Voltando a Seibersdorf, a doutora Cynthia espera que a pequena escala de encontros envolvendo fêmeas e machos seja base para algo muito maior. "Esperamos fazer isto em larga escala e assim liberarmos uma grande quantidade de machos esterilizados. Se tudo correr bem, nós seremos capazes de ver uma queda drástica no número de pessoas que sofrem com doenças transmitidas por mosquitos", espera Cynthia. Mas, para causar um impacto importante nestes números, milhões de machos esterilizados deverão ser espalhados pelas zonas problemáticas. Isto representa um desafio para Jeremie e seus colegas de pesquisa. "No momento nós estamos trabalhando com este aspecto, mas nós nunca tentamos e nós estamos aprendendo a trabalhar com aviões leves ou ultraleves. Agora mesmo estávamos começando a falar no uso de drones, aviões não pilotados", explica. Quem é o melhor? Portanto, ao invés de usar aeronaves para espalhar produtos químicos na atmosfera para eliminar os insetos, eles irão liberar mosquitos. Será essa a lógica da equipe de pesquisadores? Jeremie responde que sim. "Nós queremos espalhar mosquitos. Por isso, esta é a melhor alternativa aos inseticidas." A reportagem chega a outro lugar quente e úmido. Uma nova cena de sexo. Os cientistas precisam descobrir se os mosquitos esterilizados ainda atraem os mosquitos do sexo oposto. Jeremie explica que um macho é pego na natureza, levado ao laboratório e colocado junto com um macho esterilizado para competir por uma fêmea trazida do mato também. "Então você vê quem será o melhor. Esta é a forma de testar a qualidade do nosso produto, dos machos esterilizados." Os cientistas não são os únicos que têm tentado acabar com o problema dos mosquitos. Até mesmo a Walt Disney chegou a mirar os pequenos insetos. Na década de 40, produziu um desenho animado para educar as crianças norte-americanas sobre os perigos dos mosquitos. Mas eles continuam com seu zumbido e suas picadas. E as pessoas continuam usando inseticidas. Os cientistas do Seibersdorf acreditam que isto permanecerá assim até a técnica da esterilização de mosquitos começar a fazer algum efeito nas populações de insetos. Até lá, portanto, a alternativa aos inseticidas e mosqueteiros continua a ser um tapa para acabar com o zumbido irritante.
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20 anos de liberdade e desilusão na África do Sul
A conquista da democracia, em 1994, deu asas aos sonhos ...
A conquista da democracia, em 1994, deu asas aos sonhos de muitos sul-africanos. Mas 20 anos mais tarde, muitas expectativas saíram goradas, em particular em Daveyton, a township planeada como modelo do antigo regime. Estreitas ruelas de terra batida, onde é impossível circular de automóvel, separam inúmeras casas de chapa, onde famílias sobrevivem sem condições mínimas. “Se dessem às pessoas água e eletricidade já seria bom. Quanto às casas, não importa, já vivemos nestas barracas há muitos anos e isso não nos preocupa”, aponta um dos líderes do assentamento informal de Zenzele. Nos pontos de convergência de algumas ruelas surgem furos de água ilegais, que atendem as necessidades de várias famílias. E apenas as fogueiras iluminam e aquecem a noite da comunidade de Zenzele, um dos assentamentos informais mais pobres de Daveyton. Estabelecida nos anos 1950, Daveyton foi pensada e planeada para se tornar uma township de referência a todas as outras da África do Sul. As townships são áreas residenciais urbanas criadas durante o regime de segregação racial de apartheid e reservadas a pessoas não brancas, sobretudo aos negros. As townships eram construidas na periferia das cidades, pois as áreas centrais estavam reservada à comunidade branca. Daveyton surgiu nas imediações de Benoni, cidade situada cerca de 30 km a leste de Joanesburgo. Na década de 1970, Daveyton era a única township na África do Sul com eletricidade, água canalizada e saneamento. Era limpa e tinha as principais ruas pavimentadas a alcatrão. Tornou-se um exemplo aos olhos do regime de apartheid, e mesmo para a comunidade não branca era um local agradável para viver. Crescimento sem rei nem roque Mas com a queda do apartheid, em 1994, e o forte aumento populacional, Daveyton começou a crescer de forma desordenada e multiplicaram-se as áreas de ocupação ilegal como Zenzele. “As pessoas não têm terreno onde construir as suas casas. E o que acontece é que invadem terras e constroem as suas barracas e acabam por se juntar muitas pessoas na nova habitação. As condições são más nesses lugares. Principalmente porque os presidentes das autarquias não os reconhecem e por isso não lhes dão acesso a eletricidade, saneamento e a água canalizada”, explica Midas Chawane, professor de História da Universidade de Joanesburgo. Foi o que aconteceu no assentamento informal de Zenzele que, apesar de existir há 16 anos, ainda não é reconhecido pelas autoridades locais de Daveyton que, por isso, tardam em providenciar infraestruturas essenciais. Sem as mínimas condições, a população sente-se ignorada e até mesmo traída pelas autoridades locais. Ettie Ngozo veio parar a Zenzele depois de ter sido “retirada à força pelos serviços municipais e pelas forças policiais” da sua antiga habitação. Agora partilha uma casa fria com outras duas famílias: “Faz muito frio aqui, tenho de estar constantemente a fazer lume para aquecer a casa. Tive um bebé há pouco tempo e ele está constantemente doente e mesmo eu também”, lamenta a sul-africana. Moçambicanos em Zenzele Apesar de não haver números oficiais, presume-se que cerca de 20 mil pessoas vivam na comunidade de Zenzele. A maioria dos habitantes são sul-africanos, mas lado a lado, partilhando a mesma vida de dificuldades, moram imigrantes africanos, como é o caso de Jorge Racelo. "Fugiu de Moçambique durante a guerra civil, em 1987, e trouxe a mulher e os filhos para a África do Sul. Apesar das dificuldades do regime da época, Jorge diz que “estava bem” porque “não havia carência de emprego”. Agora, lamenta, “há falta de emprego”. Um problema que abrange todo o país. No primeiro trimestre deste ano, o desemprego atingiu um quarto da população ativa da África do Sul. Jorge Racelo faz trabalhos de carpintaria, mas gostava de ter a própria oficina. No entanto, os bancos não lhe concedem crédito. Face às dificuldades, Jorge Racelo já pensa em voltar para Moçambique. “Prefiro ir trabalhar em Moçambique. Da última vez que estive lá, vi que a vida de lá é muito melhor do que cá. Já há trabalho lá. Há brancos que estão lá abriram muitas empresas e há muitos empregos”, constata Jorge Racelo. Desilusões O carpinteiro moçambicano assistiu à queda do regime racista do apartheid. Mas o acontecimento histórico não lhe despertou grandes expectativas. Ao contrário, aliás, da grande maioria dos sul-africanos, que sonhou com uma vida melhor, repleta de novas oportunidades outrora negadas. Mas muitas expectativas saíram goradas. “Sinto que fomos traídos. Acho que nada aconteceu nestas duas décadas. Estamos a aguardar por uma vida melhor desde 1994. Não estamos satisfeitos. Na minha opinião, estes 20 anos não valeram a pena porque continuamos na mesma, sem casas nem electricidade e ainda sem um emprego digno”, lamenta Patrick Martins encostado à sua barraca em Zenzele. A desilusão dos sul-africanos estende-se muito para além da pobreza extrema da comunidade informal de Zenzele. Nas restantes áreas de Daveyton, a população vive em muito melhores condições. Mas os sonhos de 1994 não passam de mera lembrança. “Isto está pior do que durante o apartheid. Por exemplo, antigamente limpavam-se as estradas, reparava-se a eletricidade nas ruas e as casas, mas hoje em dia não é nada disso”, queixa-se Thomas Sidiela que tem uma pequena mercearia no centro de Daveyton há mais de 20 anos. Mal-estar com estrangeiros, principalmente asiáticos Além disso, “o negócio corria bem até 1994. Mas depois das eleições, começaram a chegar estrangeiros à África do Sul e a fazer também negócio na nossa township. Pelo que o comércio caiu drasticamente”, acrescenta ainda o comerciante Thomas Sidiela. Com a falta de emprego, muitas pessoas acabam por se dedicar ao comércio informal. E a concorrência aperta ainda mais com o estabelecimento de estrangeiros, provenientes de países asiáticos, principalmente do Paquistão e Bangladesh, que conseguem colocar os produtos no mercado a preços muito baixos. Na sua loja, Mandla Mkgwanazi vê menos clientes e aponta o dedo aos responsáveis. “Depois de teres gasto todo o dinheiro que tens para começar um negócio como este, chegam então, 20 anos depois, os estrangeiros que vêm com muito dinheiro. E começam logo com dois ou três negócios que crescem como cogumelos”, afirma o comerciante. Além disso, “eles chegam com a intenção de pressionar o nosso negócio, estabelecendo preços que são extremamente baixos, com os quais não é possível competir. Primeiro destroem a concorrência e quando já estamos em baixo, eles começam a subir os preços para níveis normais”, critica Mandla Mkgwanazi. Apesar deste mal-estar entre sul-africanos e estrangeiros, principalmente asiáticos, Daveyton escapou até hoje à violência xenófoba. Em 2008, uma onda de ataques xenófobos alastrou-se da township Alexandra, na cidade de Joanesburgo, a toda a África do Sul. A primeira onda de violência que afetou o país desde as primeiras eleições democráticas, em 1994, provocou mais de 60 mortes. A mão-de-obra estrangeira é, muitas vezes, mais vantajosa do que a local, em termos de custo para o empregador. E há hoje em dia profissões praticamente dominadas por estrangeiros. Os moçambicanos são sempre bem-vindos Em Daveyton, a concorrência faz-se sentir sobretudo no comércio, sector com pouca presença de moçambicanos. “Os moçambicanos dedicam-se principalmente aos trabalhos mais duros como construção de casas, etc. Mas também podem ter negócios como o meu e não há problema, porque já estão cá há muito tempo. Não há xenofobia contra eles. Aceitámo-los. Os moçambicanos estão cá desde que lutávamos pela liberdade. Por isso, hoje celebramos juntos essa liberdade. Nós dizemos ‘a luta continua’ com eles”, sublinha o comerciante Mandla Mkgwanazi. Na África do Sul desde 1993, o moçambicano Fernando Matiquina tem um pequeno negócio de fabrico de camas. Numa oficina modesta, com uma simples máquina de costura, Fernando faz três camas por dia. Olhando para trás, diz que os tempos piores já passaram: “O negócio não é assim 100%, mas posso dizer que está a 50%, porque não tenho muitos clientes e não abasteço as lojas”. A liberdade não se reflete ainda na carteira A economia sul-africana já conheceu mellhores dias. O Fundo Monetário Internacional prevê um crescimento do Produto Interno Bruto sul-africano de 2,3%, em 2014, mas no primeiro trimestre do ano o PIB contraiu 0,6%. As dificuldades económicas contribuem para uma sociedade ainda mais desigual e desiludida. “A luta foi ganha no terreno político, mas temos ainda um longo caminho a percorrer em termos económicos. Economicamente há ainda uma grande desigualdade entre brancos e negros. E pouco mudou em termos de oportunidades de emprego e há ainda alguns trabalhos aos quais os negros não conseguem ainda aceder ou pelo seu background ou porque muitas das empresas são dirigidas por brancos que sempre protegem os seus no acesso a emprego”, sustenta o professor de História da Universidade de Joanesburgo, Midas Chawane. Por isso, se por um lado “valeu a pena acabar com o apartheid, porque agora as pessoas já se conseguem identificar com o poder” e as pessoas são livres de se expressarem nas suas línguas locais, por outro, “a liberdade não se refelte nos bolsos das pessoas”, critica o comerciante Mandla Mkgwanazi.. “Vivemos na pobreza, 20 anos depois de termos democracia. A democracia está a beneficiar poucas pessoas, principalmente aquelas que estão ligadas ao poder do ANC [Congresso Nacional Africano - partido governamental]. Mas a generalidade do povo está ainda à espera dessa liberdade”, atira. Mesmo 20 anos depois do fim do apartheid, cerca de um terço da população vive com menos de dois dólares por dia. O legado de pobreza do apartheid ainda está por resolver.
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"Nós angolanos não fomos libertados, fomos aprisionados," diz Justino Pinto de Andrade
Em entrevista à DW África, Justino Pinto de Andade faz ...
Em entrevista à DW África, Justino Pinto de Andade faz um balanço da independência de Angola, dos sonhos na luta pela libertação e dos 40 anos do 25 de abril. Também relembra a vida na prisão do Tarrafal, em Cabo Verde. A Revolução dos Cravos pôs fim à ditadura em Portugal. Também para as colônias, o 25 de Abril de 1974 criou o caminho para a liberdade. Para Angola, foi a pólvora inicial de uma guerra civil, que duraria 30 anos. À frente da Luta de Libertação estava Justino Pinto de Andrade, na época um estudante de medicina que trocou a universidade pela ideologia de viver numa nação independente. Depois de passar oito anos preso e ter vivido por dois anos como deportado político, ele é atualmente presidente do Bloco Democrático, partido na oposição, e professor da Universidade Católica de Angola. Nesta entrevista concedida à DW África em Luanda, Justino Pinto de Andrade revela como deixou a universidade para se tornar um revolucionário, seus sonhos na juventude e o que pensa de seu país atualmente. DW África: Onde estava no dia 25 de Abril de 1974? Justino Pinto de Andrade: Eu estava em Cabo Verde como preso político. E já estava preso há cerca de cinco anos na cadeia do Tarrafal. Tomei conhecimento do 25 de Abril não propriamente no 25 de abril, mas uma semana depois. Durante aquela semana, fez-se completo silêncio sobre o que se estava a passar em Portugal. Foi apenas no dia 1 de maio que nós, os presos do Tarrafal, fomos avisados que tinha havido um golpe de Estado em Portugal, que ficou conhecido como a "Revolução dos Cravos". Foi neste dia também que nós saímos da cadeia. DW África: Ainda se lembra do dia em que recebeu esta notícia, de que um golpe de Estado havia trocado o poder em Portugal? JPA: Era a primeira vez, naqueles anos todos, que nós ouvíamos o barulho, as vozes da população do lado de fora do campo [do Tarrafal]. Nomeadamente: Viva a independência! Viva Angola! Viva Guiné! Viva Cabo Verde! Viva FRELIMO! Viva PAIGC! Viva MPLA! Então, percebemos que alguma coisa teria acontecido relativamente a nós. DW África: A informação sobre a troca de poder foi dada pelo diretor do Tarrafal. Ainda se lembra do que ele disse? JPA: Disse-nos que tinha havido uma mudança de Governo. “O professor Marcelo Caetano abdicou do cargo de presidente do Conselho de Ministros,” palavras dele, “e então uma junta militar assumiu o poder em Portugal.” Perguntei ao diretor do campo: “Foi uma passagem entre amigos, ou foi, como geralmente chamamos, golpe de Estado?” E então, a expressão que o diretor do campo usou foi: “Não, não, não, não. Golpe de Estado, não! Golpe de Estado, isso é em África!” DW África: Conte-nos sobre como Justino Pinto de Andrade, na época um estudante de medicina, foi preso em Luanda e depois levado para a prisão do Tarrafal, em Cabo Verde! JPA: Nós pertencíamos a um grupo clandestino. Chamávamos o Comité Regional de Luanda – CRL – do MPLA [Movimento Popular de Libertação de Angola], e nós éramos os líderes desse comité regional. Fomos presos pela PIDE [Polícia Internacional e de Defesa do Estado], ao fim de diversos atos de perseguição pela polícia política portuguesa. Eu fui condenado a oito anos de cadeia, com hipótese de prorrogação do prazo sob a forma de medidas de segurança. Fiquei cerca de cinco anos preso. Eu tinha 21 anos quando fui preso e tinha 22 anos quando fui para o Tarrafal. DW África: Ouvi dizer que para se comunicarem, os presos criaram uma rádio dentro da prisão do Tarrafal. Como funcionava a troca clandestina de notícias? JPA: Havia um buraco no banheiro. E era neste buraco que colocávamos a nossa correspondência e onde íamos recolher a correspondência deixada pelos outros companheiros. Era assim que nós nos informávamos sobre quem estava nas outras casernas, há quanto tempo estava, quantos anos tinha apanhado de cadeia, a que família pertencia, em que região de Angola tinha nascido. Portanto, essa correspondência permitia-nos nos conhecermos sem, contudo, termos uma relação pessoal e direta. DW África: O que lhe marcou na vida do dia-a-dia na prisão do Tarrafal? JPA: Eu, um jovem de 22 ou 23 anos, estudante universitário, filho de uma família considerada e respeitada, a ver aqueles homens de origem humilde, camponeses, homens que foram presos nas zonas rurais, que viram as suas aldeias serem incendiadas, eles contávam-me isso. Recordo-me deles sempre com muito carinho, com muita saudade. É a imagem mais simbólica que tenho é dos meus companheiros, que não iriam usufruir nada com a independência porque eles eram homens poucos, homens simples. Quando procuro saber o que era feito deles, e saber que o Fulano morreu assim, o Ciclano morreu assado e morreram todos assim, violentamente. Para mim é a imagem mais triste. DW África: Na sua opinião, o que a Revolução dos Cravos significou para Angola? JPA: A ideia que nós tínhamos, era de que a luta [de libertação] estava a desenvolver-se. Afinal, não era assim. Pelos vistos, os Movimentos de Libertação viviam momentos difíceis aqui em Angola durante a luta e o 25 de Abril permitiu uma viragem que depois conduziu à independência. É evidente que eu, durante aqueles anos, à medida em que os anos foram passando, fui percebendo que as coisas estavam difíceis. Tínhamos a ideia de que os companheiros continuavam a progredir no terreno, que a tropa portuguesa estava numa situação difícil e, depois, quando venho [para Angola], e começo a ouvir as pessoas falarem e a ler a informação que me é dada, digo, afinal nós estávamos numa situação difícil. Portanto, eu saísse de lá da cadeia com muitos anos de idade e não com 26 [anos] como saí. DW África: Sr. Justino Pinto de Andrade, como avalia o seu próprio papel na luta de libertação em Angola? JPA: O papel típico de um jovem naquela época que ambicionava não ser colonizado e, por isso mesmo, sentia a obrigação de contribuir para o derrube do regime colonial. Eu, pessoalmente, não me sentia em condições de continuar a viver na condição de colonizado. Eu achava que a condição de colonizado, para além de tudo, também era humilhante. Por isso mesmo, decidi envolver-me de forma séria no processo da luta de libertação nacional. DW África: E hoje, quase 40 anos depois da independência, como olha para o seu país? JPA: Olho com um misto de alegria, por um lado, porque fomos independentes. Por outro lado, com um misto de tristeza, porque não foi isso que nós pensamos que iria acontecer. Embora deva dizer que, quando estava na cadeia e convivia com presos angolanos provenientes de várias origens, percebi que o processo pós-independência iria ser complicado, que iríamos ter conflitos entre nós. DW África: O que tinha sonhado para Angola que não vê acontecer no seu país? JPA: Eu pensava num país que iria aproveitar todo o seu potencial material e humano, que iria desenvolver processos de solidariedade que permitisse um desenvolvimento para todos, mais equilibrado, mais abrangente. Hoje, sinto que, afinal, muitos dos nossos companheiros queriam apenas a independência. De tal maneira que quando viemos para Angola, o que aconteceu foi que nos matamos uns aos outros. Eu sou um sobrevivente, porque grande parte dos meus companheiros morreu. DW África: Então se os ideais não se cumpriram, o que a independência trouxe para Angola? JPA: Teoricamente trouxe o poder para os angolanos e isso já é uma boa conquista. Mas nós sentimos que este poder não foi bem usado, porque afinal temos angolanos que oprimem outros angolanos e de forma, às vezes, até mais violenta do que aquela que era feita pelos portugueses. A violência que eu assisti na cadeia pós-independência em nada se compara com aquilo que eu assisti no período colonial. E isso para mim é muito chocante. Sobretudo porque eu vi companheiros meus da luta de libertação a irem ser fuzilados e eles não mereciam ser fuzilados. DW África: Na sua opinião, qual significado tem o fato de Angola ter sido a última colônia a se tornar independente? JPA: O colonialismo português tinha um engajamento económico, social e também político maior do que aquele que tinha nas outras colónias portuguesas dada a extensão de Angola, dada também a riqueza potencial que Angola possuía. E isso fazia com que os portugueses não aceitassem entregar de mão beijada a sua jóia da coroa. Por outro lado também, deveu-se ao fato de o processo da luta de libertação em Angola ter sido um processo mais complexo e o poder colonial teria que dialogar, negociar com os diversos interlocutores que se apresentavam no terreno. DW África: Em que medida a luta pela independência é instrumentalizada e usada para legitimar o poder de grupos e pessoas específicas em Angola? JPA: Não têm outra forma de legitimar o poder. O único argumento que têm para legitimar o poder que têm é ter lutado pela independência. O processo de luta pela independência, no fundo, transformou os angolanos em prisioneiros deste poder. Nós não fomos libertados, fomos aprisionados. Aqueles que ganharam utilizam o país como se fosse uma conquista de guerra, um troféu. Sinto que há aqui uma pessoalização do poder. Uma pessoalização que depois querem transferir para os seus descendentes, ficando sempre no mesmo círculo. DW África: Diante de todos os esforços que fez pela independência, seus ideias, sua luta, as dificuldades que enfrentou, valeu a pena? JPA: Só o fato de nunca me sentir bem na condição de colonizado faz-me assumir como tendo valido a pena deixar de ser colonizado. Mas não me sinto bem como escravo de um poder totalitário como esse. Penso que nós merecíamos melhor. Eles portam-se selvaticamente contra as pessoas. Usam os órgãos de defesa e segurança sem qualquer limite e penso que este é o grande mal do pós-independência. DW África: Ficou alguma ferida aberta? JPA: Não é um ferida aberta verdadeiramente. É algum desencanto. Sobretudo, no fundo, o que me custa é saber que perdi, durante a luta, amigos e companheiros que sonharam como eu sonhei com um país melhor, deram a sua vida para nos libertarmos e hoje temos quem aprisionou o país.
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Nova onda de migração reabre debate sobre as cercas de Melilla
Trata-se de um enclave espanhol no norte da África, precisamente ...
Trata-se de um enclave espanhol no norte da África, precisamente no território do Marrocos. É a principal entrada usada por refugiados africanos para ingressar em território europeu. Imagens de pessoas tentando pular as cercas altas para chegar a cidade de Melilla são cada vez mais comuns. Conforme o Ministério do Interior espanhol, até 40 mil migrantes esperam no Marrocos uma chance de chegar de forma ilegal a Espanha. Outros 40 mil estão a caminho do Marrocos. Em março, a imprensa publicava manchetes alarmantes sobre uma alegada corrente migratória ameaçadora. Mas Jordi Évole é cético. Ele é apresentador de um programa de televisão de sucesso, pesquisou a origem destas informações e descobriu uma série de questões em aberto sobre o tema. Atualmente ele pesquisa em Melilla. "Nós queremos descobrir , se os registros batem ou se são movidos por interesses específicos. Por exemplo, para receber uma ajuda adicional da União Europeia ou para tornar ainda mais difícil as condições para os refugiados que querem vir para nossa terra”, diz Évole. Barreira ineficaz De qualquer forma, os refugiados conseguem pular a cerca. E comemoram bastante o feito. Em março, houve a mais bem sucedida migração de refugiados de forma clandestina até aqui: foram 500 em uma única manhã. Não menos impactante foi a ação dos guardas de fronteira, prontos para fazer com que a lei seja cumprida, como explica José Palazon da organização PRODEIN. Para ele, o que a Guarda Civil está a fazer não é nada mais do que cumprir a sua obrigação. Se um imigrante sobe a cerca e a escala, é detido pela Guarda Civil e levado ao Comissário da Polícia Nacional - conforme o que contempla a lei espanhola. "Esse é o seu trabalho, não atirar contra as pessoas com balas de borracha ou capturar as pessoas que estão presas entre as três cercas e deportá-las imediatamente. Mas fazer este trabalho de forma legal é bastante complicado”, disse. Há anos, ativistas filmam e fotografam as incursões de migrantes na fronteira. Salientam reiteradamente que a Guarda Civil usava balas de borracha contra os refugiados no passado. Acima de tudo, os guardas deportavam os refugiados, mesmo quando eles já estavam em solo espanhol. Jesus Ruiz, do Sindicado da Polícia Nacional em Melilla confirma. "Eu posso dizer que aqui estão fazendo procedimentos judiciais, tratando de imputações contra autoridades políticas e inclusive policiais por terem feito o que é chamado "devoluções quentes". Então ingressamos em um processo judicial para quese defina isto como um ato legal ou ilegal”, diz Ruiz. O esforço para a legalidade Jesus Ruiz e seus colegas da Polícia Nacional não têm o dever de fazer a segurança da fronteira. Este é um papel dos agentes de fronteira da Guarda Civil. Mesmo assim Ruiz tem uma posição clara: "esta devolução é ilegal. Sem a aplicação de qualquer tipo de lei, do meu modo de ver, é ilegal." O conflito aqui está no fato de se considerar que, quando um refugiado está na Espanha, na verdade, e deve ser tratado de acordo com a lei. Deve receber assistência médica, ser submetido a procedimentos de identificação biométrica e acomodado em um acampamento. A Guarda Civil, porém, não está concedendo entrevistas para esclarecer seus procedimentos. O Subtenente Juan Antonio Martin, assessor de imprensa da vigilância da fronteira, diz que a cerca foi recuada para trás dos limites de Melilla com o Marrocos, como está assinado em um tratado. "Nós compreendemos que um imigrante está na Espanha quando ele entra no território na sua totalidade", explica. Algumas vezes os refugiados eram apanhados entre o território espanhol, com os pés nas cercas da fronteira. “Eram transferidos através dos portões instalados nas próprias cercas”, afirmam integrantes de organizações humanitárias, como José Palazon. Expulsões controversas Ele diz que a Justiça determinou que a polícia respondesse as queixas das organizações. No entanto, as lideranças da corporação acabaram “transferindo a responsabilidade aos guardas da fronteira, individualmente”, segundo o sindicalista, integrante da Polícia Nacional, Jesús Ruiz. "É verdade que, há um ano, tem ocorrido problemas com isto na Guarda Civil. Acontece então todo este jogo, onde os políticos se metem sem saber nada. Porque eles podem provocar prejuízos ao trabalho da Guarda Civil. Eles passam uma sensação de não ter conhecimento ou de insegurança sob o ponto de vista jurídico. Isto deve ser evitado”, diz Ruiz. Conforme Palazon, nas últimas semanas e até meses, os guardas da fronteira tem se negado a fazer deportações ilegais. Apesar de terem ocorrido acordos com Marrocos, neste meio tempo, para retirar os refugiados da área de fronteira levá-los para território marroquino, alguns vídeos provam a nova conduta dos agentes de segruança da fronteira. Parece claro que a política é enviar o maior número de refugiados possível, com pouco barulho, de volta para o Marrocos. O ministro do Interior da Espanha, Jorge Fernandez Diaz, quer, de qualquer forma, chegar a um acordo sobre as “deportações quentes” com Marrocos. Alarde desnecessário? Já o prefeito de Meilla, Juan José Imbroda, não esconde que preferia que simplesmente fosse mudada a Lei de Estrangeiros. Ele diz que o objetivo é Marrocos aceite a readmissão de qualquer migrante que seja capturado. Que a polícia e a Guarda Civil possam devolver ao Marrocos aqueles que entram ilegalmente na Espanha. "O que se deve fazer para se modificar a lei? Quem não cumpre a lei são, primeiramente, aqueles que estão violando a fronteira. Não se pode entrar em um país violando fronteiras - seja para trabalhar, seja para cometer crimes ou o que for", explica o prefeito. Conforme o prefeito, as condições de vida nos países de origem dos imigrantes devem ser melhoradas e é claro que isto não irá acontecer da noite para o dia. Mas há quem defenda que Melilla e Espanha devem se “proteger da onda de refugiados, do contrário a ordem pública corre o risco de entrar em colapso”. O jornalista Jordi Évole, no entanto, ainda não está convencido sobre isto, diante de todas as apurações que fez até aqui. "A migração é um problema muito complexo. Não creio que haja na Espanha motivo de alarme como este tema. Como eu creio que o governo está tentando nos fazer acreditar que haja”, explica Évole. Gurugu No monte Gurugu, às portas de Melilla, centenas de africanos vivem em acampamentos à espera do dia para a transposição da cerca ou seguir o caminho com barcos para a Europa. A reportagem encontrou refugiados em desespero. Talvez tenha sido o destino que fez a reportagem encontrar, um ano depois, Rigan no porto de Melilla. O reporter Alexander Göbel viu o seu interlocutor pela primeira vez na África Central. Hoje, o revê em um acampamento de abrigos feitos com plásticos velhos nas rochas de Gurugu. "Aqui eu estou finalmente livre. Eu posso transitar normalmente pela cidade e ninguém me incomoda. Do outro lado, no Marrocos, éramos como prisioneiros. Aqui em Melilla, temos que nos preocupar em seguir as regras deles. Então está tudo bem", explica Rigan. Antes mesmo do primeiro encontro, a “Fortaleza Europa” - da montanha de Gurugú até Melilla - já chamava a atenção. Landrigan contou sobre a sua vida como imigrante ilegal por dez anos no Marrocos. Os efeitos dos campos Como todos no campo marroquino, ele estava muito magro. Suas bochechas eram fundas e seus olhos, vermelhos e saltados. Os braços e as mãos ainda têm várias cicatrizes. A agressão de policiais resultou-lhe uma ferida profunda na cabeça, que, mais tarde, infeccionou. Quando ficou no campo de refugiados no Marrocos, Rigan vestia apenas um manto verde sujo e sandálias de plástico sem meias. O reencontro com este homem era, para a equipe de reportagem, algo bastante improvável. "Você apenas tem que ter paciência e acreditar em seu objetivo - e confiar que o destino trará coisas boas, mesmo que demore muito tempo. Dou graças a Deus que Ele me trouxe até aqui", explica. Agora Rigan parece saudável e melhor alimentado. Está com uma barba de três dias, usa brincos e um velho uniforme do exército espanhol. Cnta uma história do Natal de 2013, quando colocou pela primeira vez os pés no solo europeu. O final de uma odisséia inimaginável. "Em 2004 e 2005, eu estive em Gurugu. Naquela ocasião aconteceu de tudo nas cercas de Melilla. Então os marroquinos descarregaram-nos de um ônibus no deserto da Mauritânia. Eu caminhei mais de 20 dias a pé, quase desisti, mas tinha uma convicção: tinha continuar tentando". Fuga arriscada Rigan e alguns amigos conseguiram dinheiro para comprar um barco. Enfrentaram um caminho nebuloso e tempestuoso, mas completaram o percurso de Nador à Melilla. "Sabíamos que, se morrêssemos, não faria diferença. Nós tínhamos uma chance. A Guardia Civil não poderia fazer outra coisa se não ajudar. Puxaram-nos para fora da água. Em seguida, fomos levados para o hospital, e em algum momento eu estava no campo de refugiados, no CETI. No monte Gurugu Rigan foi vigia e chefe do campo. Era continua sendo um chefe rigoroso até hoje.Em Melilla, ele comandou um grupo de jovens da Guiné, Camarões e Congo Brazzaville na lavagem de carros. Eles não ficavam parados pelo campo. Precisavam fazer algo útil para fazer algum dinheiro – queriam ligar para casa, falar com suas famílias. "Quando um carro chega ao estacionamento, nós o ajudamos a estacionar. Aí, perguntamos ao condutor se nós podemos lavar o veículo. Caso ele aceite, nos dividimos e lavamos. Eu recebo o dinheiro, alguns euros, e no fim do dia dividimos tudo de forma igual", explica. Para Rigan, que fez o secundário na sua cidade, Melilla é apenas um estágio intermediário. Seu objetivo é a Europa. Ele aceita o fato de ser interno em um acampamento espanhol. Para isto, ele também aprende o idioma. Ele quer seguir a sua a vida. "Eu gostaria de visitar vocês na Alemanha. Eu sonho com Berlin e Irlanda. Para isso eu também preciso aprender inglês. Eu sou ambicioso e ainda tenho muito a fazer". Até lá, Rigan ainda vai precisar lavar muitos carros. Sempre em Melilla, sempre dando olhadas para o outro lado da cerca – para a África.
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HD
Mais passado que futuro: mineiros moçambicanos na África do Sul
A histórica migração remonta ao século XIX, atingiu o pico ...
A histórica migração remonta ao século XIX, atingiu o pico na década de 1970 e está hoje em fase decrescente. A busca do “El Dorado” na África do Sul marcou a economia, a sociedade e a cultura de Moçambique. Rica em recursos minerais, como ouro e platina, a África do Sul foi desde sempre vista como terra de oportunidades. Milhares de moçambicanos, principalmente do sul do país, partiam, desde o século XIX, para trabalhar nas minas sul-africanas com o sonho de uma vida melhor. Também Fany Mpfumo, considerado por muitos o rei da marrabenta, foi trabalhar para as minas no final da década de 1940 e, tal como alguns outros mineiros, acabaria por se dedicar para sempre à música. Aliás, “alguns dos primeiros músicos moçambicanos que tiveram a oportunidade de gravar tiveram-na na África do Sul a partir da década de 1950” e muitos desses músicos “foram para a África do Sul como mineiros e já estando lá estabelecidos entraram no mercado musical”, explica o antropólogo moçambicano Marílio Wane. Contudo, os mineiros que se tornaram músicos contam-se pelos dedos das mãos: Fany Mpfumo, Francisco Mahecuane e o mestre de timbila Venâncio Mbande foram alguns deles. A maioria dedicou-se exclusivamente ao duro trabalho no subsolo, explorando ouro e platina nas grandes empresas de mineração. Ir às minas para poder casar A vaga migratória, que remonta ao século XIX, intensificou-se depois da assinatura de um acordo para facilitar o trabalho de moçambicanos na África do Sul, em 1964, entre os Estados sul-africano e português, antigo poder da ex-colónia de Moçambique. Muitos moçambicanos partiam principalmente das zonas rurais das províncias no sul de Moçambique, Maputo, Gaza e Inhambane. Era vulgar a ideia de que para casar muitos homens tinham primeiro de ir às minas. “Ao longo de todo o século XX era uma honra para uma família ter um filho que ia trabalhar nas minas da África do Sul. Aliás, em muitas zonas rurais do sul de Moçambique, um homem ir trabalhar nas minas era uma espécie de segundo rito de iniciação, ou seja, a pessoa tornava-se digna de constituir uma família, de ser um homem mesmo, quando fazia essa viagem para a África do Sul para trabalhar nas minas, levando em consideração todos os riscos que isso afetava”, lembra o antropólogo Marílio Wane. A histórica migração de mineiros moçambicanos para a África do Sul teve “um efeito de ampliação do universo cultural das populações. E fora outros costumes urbanos como a forma de se vestir, a questão do trabalho assalariado, a relação com o trabalho e mesmo notícias sobre outras partes do mundo eram mais acessíveis no universo urbano da África do Sul associado às minas”, aponta o antropólogo. E a própria relação “com os bens de consumo a que tinham acesso, por exemplo, as pessoas traziam muitos rádios de lá, então passaram a ouvir muita música gravada” em Moçambique, acrescenta Marílio Wane. Mudam-se os tempos... Nos tempos áureos, na década de 1970 e portanto durante o regime de segregação racial do “apartheid”, a indústria mineira sul-africana chegou a empregar cerca de 120 mil trabalhadores moçambicanos, num universo de um milhão de mineiros. Ou seja, quase um em cada oito mineiros era moçambicano. Hoje o cenário é diferente: são cerca de 43 mil moçambicanos entre 500 mil mineiros. Portanto, apenas um em cada doze mineiros é moçambicano. E a tendência é para continuar a diminuir, não por falta de interesse, mas porque “a própria República da África do Sul tem apertado um pouco as suas políticas protecionistas para o emprego do seu cidadão e isto tem, de facto, impondo certas restrições no recrutamento de mão-de-obra estrangeira, não só dos trabalhadores moçambicanos, mas dos trabalhadores de outras nacionalidades como do Lesoto, Botswana e Suazilândia”, explica Adelino Espanha Muchenga, delegado do Ministério do Trabalho de Moçambique em Joanesburgo, na África do Sul. Mas além disso, o sector de mineração atravessa várias dificuldades, como a redução das matérias-primas e a instabilidade causada pelas constantes greves no sector. “Onde é visível esse impacto e de forma significativa é ao nível do emprego e do rendimento das famílias das zonas tradicionalmente exportadoras de mão-de-obra, Chibuto, Chokwé, Manjacaze e Guijá”, no entanto, “no dia-a-dia da vida de Moçambique, o impacto é quase invisível, é marginal”, avalia o economista moçambicano Luís Magaço. Um sector em constante instabilidade A mais longa greve da história da África do Sul paralisou, no primeiro semestre deste ano, o sector da platina durante cinco meses. Os trabalhadores regressaram aos trabalhos no final de junho, depois de alcançado um acordo com as empresas que prevê que os salários dos mineiros com vencimentos mais baixos sejam aumentados em mil rands mensais (o equivalente a 69 euros) todos os anos até 2017. Durante a paralisação de cinco meses, os mineiros ficaram sem receber e “em vez de o mineiro enviar comida para Moçambique, a família é que estava a mandar comida para ele cá ter o que comer”, descreve Manuel Matola, coordenador dos Trabalhadores Moçambicanos na Província sul-africana de Noroeste. Os trabalhadores estrangeiros nas minas não costumam estar na linha da frente das greves, lideradas sobretudo pelos mineiros e sindicatos sul-africanos. As minas de ouro escaparam à paralisação este ano. Mas em 2012, o sector foi também afetado pela onda de greves violentas que gerou mais de 40 mortos na região de Marikana. Nessa altura, o mineiro Baptista Luís Falaque estava de férias junto da família em Maputo. Mas concorda com as reivindicações salariais pois recebe “um dos salários mais pobres”, sendo difícil “criar uma maneira de como a família a não passar um dia sem comer”. Há 22 anos a trabalhar nas minas, Baptista Luís Falaque lamenta que o ordenado continue a ser magro para ajudar os 15 familiares que dependem de si. A contestação salarial nas minas de ouro poderá voltar a soar no próximo ano, uma vez que termina o acordo de três anos, assinado em 2012, entre as empresas do sector e os sindicatos. Uma profissão de riscos no subsolo e à superfície A atividade mineira é um trabalho fisicamente duro que acarreta riscos para a saúde. Tuberculose, devido às poeiras, e o HIV/SIDA são as doenças que mais afetam e preocupam na comunidade mineira. O economista moçambicano Luís Magaço sublinha que a disseminação do vírus HIV em Moçambique atingiu um pico preocupante nas décadas de 1990 e 2000. Um dos fatores que mais contribuiu para a propagação do vírus no país foi a mobilidade de trabalhadores como mineiros e camionistas. “Os mineiros vão e estão sozinhos, as famílias estão cá. E eles acabaram por ter relações com mulheres infectadas (a África do Sul tem a taxa mais alta de infecção do HIV/SIDA)”, pelo que muitos trabalhadores acabaram também por ficar infectados e por transmitir o vírus à família em Moçambique, esclarece Luís Magaço. “Houve anos em que havia um crescimento populacional negativo pelo falecimento primeiro dos chefes de família, depois das esposas e filhos infectados”, o que foi particularmente “visível das regiões de Chokwé, Chibuto e Manjacaze, onde há um elevadíssimo número de órfãos de pai e mãe”, sublinha o economista. Por isso, as empresas do sector de mineração apostam na prevenção e aconselhamento aos trabalhadores. E é nesse departamento de uma empresa de exploração de ouro, em Carletonville, cerca de 80 km a oeste de Joanesburgo, que trabalha Arnaldo Joaquim Cossa, onde tem visto uma redução dos casos de HIV/SIDA. Quando, há cinco anos atrás, “começámos o nosso programa, sempre que as pessoas vinham fazer testes, tínhamos cerca de 200 pessoas [infectadas com o vírus HIV] por mês. Então, acho que, desde que começámos o nosso programa, esse número desceu e hoje é de cerca de 100 pessoas por mês”. Antes de integrar, nos últimos cinco anos, a equipa de aconselhamento aos trabalhadores sobre gestão de dinheiro, prevenção e tratamento de doenças, Arnaldo Joaquim Cossa deixou, há 25 anos, Manjacaze, na província de Gaza para trabalhar lá em baixo - como vulgarmente se referem os mineiros ao subsolo. Casas de chapa e insegurança Para receberem um subsídio de alojamento (entre os 1.500 e os 2.000 rands, o que corresponde a um máximo de 140 euros), muitos trabalhadores optam por morar fora dos hostels, as habitações das companhias onde os mineiros vivem em comunidade. Montam as suas casas de chapa nas bermas da estrada, nas imediações das empresas, sobrevivendo em condições ingratas: sem água nem eletricidade e sujeitos aos assaltos e à violência de grupos perigosos, muitas vezes armados, que fazem a exploração ilegal do ouro. Além disso, são frequentes ainda as queixas da alimentação fornecida pelas empresas: “a comida que nós comemos está mal preparada”. “Dada a forma como estamos a trabalhar, teríamos direito a ter boa comida”, critica César Francisco Mussa que, há mais de 25 anos, trabalha nas minas. “Mamparra magaíça” A lista de reclamações não se fica por aqui. Lá em baixo os mineiros dizem que são todos iguais mas à superfície não é bem assim, nem mesmo em Moçambique. “O mineiro moçambicano é alvo quase de tudo”, na África do Sul as pessoas dizem que “a gente que vem arrancar os postos de trabalho deles (dos sul-africanos)", queixa-se José Joaquim Munguambe, que há 20 anos partiu da província de Maputo em nome de um futuro melhor para a sua família. "Eles dizem abertamente que há falta de emprego, que há muitos estrangeiros a empregar-se aqui e eles que são os donos da terra não conseguem emprego, vivem numa situação de pobreza absoluta”, afirma Munguambe. Além disso, o mineiro conta que quando vai a Moçambique, “a partir da fronteira até chegar a casa, quando alguém sabe que você trabalha na África do Sul, você não é nada e isso leva a partir corações”. Mas para o sociólogo Marílio Wane, a troça é coisa do passado, pois foram principalmente os primeiros mineiros moçambicanos na África do Sul alvo de maior chacota no próprio país. “Muitos trabalhadores que iam para as minas da África do Sul ganhavam um dinheiro que, na altura, era inacessível em Moçambique. Mas quando voltavam, pela euforia e até como forma de demonstrar que tinham posses, eles muitas vezes acabavam por ser enganados, seja por prostitutas ou negociantes desonestos”, pelo que surgiu a expressão “mamparra magaíça, que quer dizer uma pessoa burra, idiota que juntou muito dinheiro à custa de muito trabalho e sacrifício mas quando chegava aqui perdia esse dinheiro todo de forma muito rápida e fácil”, esclarece Marílio Wane. Mineiros moçambicanos com futuro no próprio país? Muitos trabalhadores moçambicanos queixam-se também de serem prejudicados no câmbio efetuado no pagamento de salários. Em termos práticos, parte do pagamento é feita ao Estado moçambicano em rands que, através de uma agência, em Maputo, paga aos trabalhadores ou à família em meticais. O câmbio é efetuado a uma taxa fixa, muitas vezes mais baixa do que a taxa de câmbio no mercado livre. Assim, os mineiros acabam por perder uma parte do seu salário. O Ministério do Trabalho em Moçambique está a tentar resolver o problema com a abertura de contas bancárias individuais. Assim, no futuro, a transferência do salário poderá ser feita diretamente para a conta dos trabalhadores à taxa de câmbio do dia. Apesar da emigração mineira ter um impacto cada vez mais residual na economia, a verdade é que, conclui o sociólogo Marílio Wane, este fenómeno histórico moldou a sociedade e a cultura moçambicana. Entretanto, abranda o ritmo da emigração de mineiros para a África do Sul. Contudo, para a economia do país, futuro deverá passar, acredita o economista Luís Magaço, pelo aproveitamento da força de trabalho experiente para as minas de carvão da província central de Tete. Pois, o carvão é atualmente o principal produto de exportação em Moçambique.