Contraste | Deutsche Welle
O programa “Contraste” aborda assuntos de política e direitos humanos, questões de desenvolvimento e meio ambiente.
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Pedro Martins, o prisioneiro mais jovem do Tarrafal
Tinha 16 anos quando ingressou nas fileiras clandestinas do PAIGC. ...
Tinha 16 anos quando ingressou nas fileiras clandestinas do PAIGC. Três anos depois, era o mais jovem preso político no campo do Tarrafal, onde foi torturado. É libertado a 1 de maio de 1974, sob aclamação da população. Foi Pedro Martins que deu a notícia da morte do fundador do PAIGC, Amílcar Cabral, em 20 de janeiro de 1973, aos companheiros. Ele e todos os presos políticos que se encontravam no campo de concentração do Tarrafal seriam libertados a 1 de maio de 1974, uma semana depois da Revolução dos Cravos em Portugal. Atualmente, o presidente da Associação Cabo-Verdiana dos Ex-Presos Políticos no Tarrafal de Santiago trabalha como arquiteto na Cidade da Praia. Em entrevista à DW África, Pedro Martins começa por recordar o dia em que foi preso pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), na sequência da tomada do barco Pérola do Oceano, em agosto de 1970, em Santiago. Uma armadilha preparada por José Reis Borges, que se fazia passar por coronel do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) e estava ao serviço da polícia política portuguesa, e na qual foram apanhados 11 cabo-verdianos. DW África: Lembra-se bem deste dia? Como é que tudo aconteceu? Pedro Martins (PM): Lembro-me muito bem. Eu estava precisamente no Tarrafal, a tentar organizar o partido na clandestinidade. Coincidentemente estávamos a fazer o levantamento do Campo de Concentração do Tarrafal. Porque nessa altura também não se punha de lado a questão da luta armada pela libertação de Cabo Verde. Essa situação com o senhor Reis Borges é uma situação que continuo a investigar, porque depois tive informações de que ele esteve reunido com o ministro dos Negócios Estrangeiros [de Portugal], que nessa altura era Silva Cunha. DW África: Ou seja, esta operação até pode ter sido preparada pela PIDE a partir de Lisboa? PM: Sim, estou convencido que essa ação foi iniciada e controlada em Portugal sem o conhecimento do Governo local. Tudo leva a crer que não estavam no mesmo diapasão, até porque usaram esse Reis Borges para os ajudar a interrogar. José Borges aproveitou-se de alguns militantes do partido que tinham ligação comigo e, quando foi apanhado, entregou-os. E eu fui para a prisão. Felizmente no meu caso, e com muito orgulho, ninguém foi preso atrás de mim. DW África: Passa sete meses na Cadeia Civil da Praia e depois é transferido para o Campo de Concentração do Tarrafal, em 1971. O que sentiu quando aí entrou? No seu livro "Testemunho de um Combatente" fala num "ambiente quase lunar". PM: Foi um período bastante difícil porque coincidiu com o período de tortura da PIDE. Foram sete meses. Queriam que eu lhes falasse sobre o partido aqui em Cabo Verde na clandestinidade e, pelo facto de ter recusado, deve imaginar o que é que passámos nessa altura. Fomos os primeiros presos políticos a quem recusaram julgamento. Fomos enviados para o Campo de Concentração do Tarrafal, sem julgamento, sem nada. Foi uma situação de choque tremenda. Foi um sítio que foi planificado, desenhado e construído para fazer sofrer as pessoas. DW África: E além de ter estado preso e sem direito a julgamento quatro anos também foi torturado. Alguma vez pensou desistir ou quase perdeu a esperança? PM: Houve momentos difíceis. Eu tenho um grande orgulho por ter resistido àquilo, mas não foi simples. Foram momentos horríveis. Ainda hoje vivo algumas consequências daquilo porque nós somos humanos e temos limites. Eu podia não ter resistido. DW África: O que fazia para combater a depressão e o isolamento? PM: Tentávamos fazer tudo o que era possível. Por exemplo, eu estudei aí [7º ano] e até tinha disciplinas como Físico-Química, Matemática, Desenho. DW África: E como era estudar num campo de concentração? PM: Era o desenrascar no limite. Eu lembro-me, por exemplo, que tinha exames de Físico-Química e tinha de fazer experiências químicas. E imaginava que punha pedaços disso e daquilo numa proveta, punha ácido, via determinadas reações, com fumos amarelos ou azuis. Lembro-me dos camponeses que estavam aí detidos, presos políticos, e que iam dizer aos colegas mais ilustrados que alguma coisa não estava bem com o Pedro porque ele estava a ver fumos amarelos! Mas foi um escape ter essa possibilidade. Porque quando chegámos ao campo de concentração puseram-me numa cela dentro de outra cela. Ficávamos isolados 24 horas por dia. Mesmo a pequena cama que tínhamos aí, e que teoricamente deveria ter um lençol branco, tínhamos de apalpar para saber onde estava. Aquilo era repressão permanente. Nós não nos podíamos chegar, mesmo quando tínhamos intervalo, a dois ou três metros do arame farpado, porque se não, segundo eles, havia ordens para dispararem contra nós. E provocavam-nos. Por exemplo, nós tínhamos recusado a bandeira portuguesa porque tínhamos a nossa, a bandeira de estrela negra do PAIGC, e aos domingos obrigavam-nos a perfilar, punham-nos em posição de sentido e hasteavam a bandeira portuguesa. Não podíamos protestar contra a alimentação, que era horrível, os maus-tratos, a falta de tratamentos médicos, mosquitos por todo o lado, calor. DW África: Às vezes os seus pais também o visitavam. Como eram estes momentos? De muita emoção? PM: De muita emoção e às vezes era difícil. Quando a minha mãe me visitou pela primeira vez disse-lhe que estava tudo bem, para não lhe dar tempo de reagir emocionalmente. Mas mãe é sempre mãe e, de repente, as lágrimas começam a cair e não há nada que pare aquilo. Vermos a nossa família aí dava-nos um bocadinho de força, embora avisássemos para não nos visitarem assim tanto. Não sei se aquilo era algum conforto ou desconforto. Havia toda uma cerimónia repressiva que se fazia. Para se entrar no campo tinha de se passar por várias barreiras de polícias, tropas, guardas auxiliares. E depois era-nos dado um sítio de dois metros e meio por três. E quando, por exemplo, no meu caso iam os meus familiares, que eles pensavam que tinham alguma ligação com o movimento de libertação, o PAIGC, num sítio tão pequeno como aquele punham cinco ou seis polícias. Era uma pressão tremenda. DW África: E esta pressão física e psicológica a que estavam sujeitos também tinha reflexos negativos na convivência entre os próprios detidos? PM: A repressão que nós sofríamos entrava em nós e tornava-nos revoltados. Mas fazíamos tudo para que houvesse um equilíbrio. Fizemos tudo, por exemplo, para que os camponeses que tinham menos formação estudassem. Conseguiram estudar, tiveram possibilidade até de fazer alguns exames. Aumentámos a capacidade cultural das pessoas que aí estavam. E até procurámos ajudar os angolanos que estavam do outro lado. Às vezes tínhamos de mandar bilhetes, mas isso era feito debaixo de uma pressão tremenda. Porque nós já tínhamos infiltrados no campo, tínhamos guardas aí dentro, até tínhamos um rádio clandestino. DW África: Precisamente. Tinham um transístor clandestino através do qual conseguiam captar várias emissoras e faziam um resumo noticioso que depois liam na casa de banho. Era a famosa "rádio retrete". O que ouviam? PM: Ouvíamos tudo. Aliás, eu não ouvia diretamente. Havia um preso chamado Luís Fonseca que nessa altura era o responsável pelo rádio. De vez em quando, o rádio descomandava-se e tínhamos de o mandar para fora para ser consertado. Mas ele é que escutava aquilo, escrevia as informações o mais resumidamente possível e punha aí. Só quatro pessoas é que conheciam aquilo. Era clandestinidade entre clandestinidade. O dia mais crítico foi o dia em que Amílcar Cabral foi assassinado porque nós não quisemos acreditar. DW África: E foi precisamente o Pedro Martins que teve de dar a notícia da morte de Amílcar Cabral aos seus colegas. Como é que foram as reacções? PM: Amílcar aqui ganhou um estatuto de semi-deus. Era quase imortal. Foi a primeira vez que vi homens daquela idade a chorar. Mas depois tínhamos de disfarçar porque eles não podiam aperceber-se que nós tínhamos essa informação. DW África: A sua libertação e de todos os políticos do Tarrafal acontece a 1 de maio de 1974, cinco dias após o 25 de Abril em Portugal. São recebidos como heróis por milhares de pessoas na rua. Era um panorama quase surrealista? PM: Muito surrealista. Particularmente dentro da prisão do Tarrafal porque nós soubemos quase de imediato do golpe de Estado, mas nós não podíamos saber de nada disso. O mais dramático foi que o chefe da polícia ia tirar-me da cela, queria dizer-me o que tinha acontecido, mas não queria passar informações. Enfim, ele depois abriu-se e pediu-me proteção. E eu disse: Não, eu aqui sou um preso. [Estava preocupado com] as coisas que aconteceram noutros sítios onde houve vingança. E eu disse que aqui isso não iria acontecer. Por incrível que pareça, esse senhor depois ia perguntar-me se não precisava de nada, ia comprar-me pães. Uma situação surrealista! Mas no fim, quando saímos, lembro-me que estava o comandante do exército aqui em Santiago e um responsável, procurador da República, e puseram-me no meio. Parece-me que a ideia deles era levar-me para junto da população - porque havia milhares de pessoas aí – e pôr-me fora. A população apanhava-me e ia-se embora. Só que lá dentro, a meio do caminho, o ambiente era eletrizante e era uma oportunidade única. Eu levantei a mão e gritei: Viva a independência de Cabo Verde! Viva Amílcar Cabral! E a população invadiu o campo, passando por cima das tropas. Aquilo podia ter criado confusão. Felizmente não criou. E nós fomos recebidos como libertadores, digamos assim, com muito entusiasmo em todas as vilas. Foi um dia memorável. Quando chegámos a Santa Catarina, que era o centro mais influente da luta de libertação, lembro-me de ver o meu pai com um megafone a denunciar o campo de concentração. DW África: E os dias que se seguiram foram tão intensos quanto o primeiro? A euforia continuou? PM: Continuou, mas de outra maneira. Eu só tive oportunidade de passar um dia com os meus familiares porque era preciso organizar politicamente o país. No dia seguinte, a minha mãe foi perguntar-me se não a tinha sentido no meu quarto. Eu disse: Não, mas o que foste fazer, mãe? Ela respondeu: Eu não acreditei, fui apalpar para ver se, de facto, já tinhas chegado a casa. No dia seguinte, já estava na Cidade da Praia para fazer retratos de Amílcar Cabral – porque eu pinto, faço desenhos – e para preparar o primeiro comício político da nossa História, que foi no dia 4 de maio. DW África: Há três anos, a Universidade do Mindelo atribuiu o doutoramento honoris causa a Adriano Moreira, antigo ministro do Ultramar responsável pela reabertura do Campo de Concentração do Tarrafal, em 1961. Sentiu que esta homenagem foi um insulto? PM: Foi um grande insulto. E, infelizmente, estiveram nessa cerimónia altos funcionários e dirigentes do país. Há que haver respeito. Um indivíduo que mete muitos estudantes e professores no Tarrafal e depois aparece aqui a dizer – e até a mentir – que ele não foi o autor daquela legislação. Lembro-me que até o jornal [português] Público publicou aquilo numa edição de domingo. Foi uma vergonha. DW África: Há tempos fundou a Associação de Combatentes da Liberdade da Pátria. Como está a situação dos antigos combatentes? Estão, de certo modo, abandonados ou esquecidos? PM: Os ex-presos políticos não foram bem tratados aqui. Muita gente, por consequências da prisão, morreu muito cedo, sobretudo com problemas intestinais. E nós fizemos muita pressão. Houve até da parte do Governo algum apoio, mas não de forma muito digna. Foram concedidas umas pensões no âmbito da luta contra a pobreza. Acho que não se deviam tratar assim os presos políticos, por aquilo que fizeram, por aquilo que passaram, por aquilo que trouxeram ao país, porque eles estão nos alicerces da formação deste país. Mas continuamos a batalhar.
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Lilica Boal, a eterna diretora da Escola-Piloto do PAIGC
Escolhida por Amílcar Cabral para dirigir, em Conacri, a escola ...
Escolhida por Amílcar Cabral para dirigir, em Conacri, a escola que preparava os filhos dos combatentes para a independência, Maria da Luz "Lilica" Boal agradece hoje "a sorte" de ter participado na luta de libertação. Maria da Luz "Lilica" Boal nasceu em 1934 no Tarrafal de Santiago, dois anos antes de o Governo português criar a Colónia Penal naquele concelho cabo-verdiano para encarcerar os presos políticos que se opunham ao regime. Foi durante os tempos de aluna universitária na capital portuguesa, Lisboa, onde frequentava a Casa dos Estudantes do Império, que passou a identificar-se cada vez mais com os ideais da libertação. Em 1961, ano em que começou o conflito armado em Angola, um grupo de estudantes africanos das então colónias portuguesas fugiu de Portugal, rumo à luta pela independência. Entre eles estava Lilica Boal, então com 26 anos e mãe de uma bebé de 17 meses. Depois de passar pelo Gana e pelo Senegal, onde tratava os feridos de guerra que aí chegavam por Ziguinchor, na fronteira, Lilica Boal assumiu a direção da Escola-Piloto do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), inaugurada em 1965, em Conacri, para acolher os filhos combatentes e os órfãos de guerra. A professora era também responsável pela elaboração dos manuais escolares. DW África: Em junho de 1961, ano do início do conflito armado em Angola, integrou um grupo de estudantes africanos que fugiu de Portugal para continuar a luta pela independência noutros destinos. Recorda-se dessa travessia? Lilica Boal (LB): Recordo-me muito bem. Nessa altura estava a preparar a minha tese para a licenciatura em História e Filosofia. Frequentava muito a Casa dos Estudantes do Império e, a partir daí, organizou-se essa saída de um grupo de estudantes dos diferentes países, mas mais de Angola, que se queriam juntar aos movimentos de libertação. Saímos de Lisboa para o Porto e, no dia seguinte, muito cedo, partimos em direção à fronteira espanhola. Mas, em Espanha, a polícia já estava à nossa espera. Fomos chamados para a polícia e cada um ia fazendo a sua declaração. Entretanto, terá havido uma intervenção da Igreja Protestante, porque depois ficámos instalados numa igreja do Conselho Ecuménico das Igrejas. Portugal já tinha pedido a Espanha para nos mandar de volta. [Mas] fomos libertados em Espanha e seguimos para Paris. Entretanto, houve comunicação com outros países de África, com o Gana. E aí [o Presidente] Kwame Nkrumah prontificou-se a mandar um avião para nos ir buscar à Alemanha. Chegados ao Gana fomos alojados num liceu. Era um grupo de cerca de 50 jovens estudantes. Tivemos oportunidade de contactar vários dirigentes dos outros países [como os angolanos Viriato Cruz e Lúcio Lara]. Foi aí que eu me encontrei, pela primeira vez, com Amílcar Cabral que, por acaso, conhecia muito bem a minha família do Tarrafal. DW África: Como foi esse primeiro encontro com Amílcar Cabral? LB: Foi muito bom. Ele era uma pessoa de uma simplicidade extraordinária, um grande pedagogo. Falando com ele uma pessoa sentia-se muito mais livre e convicta daquilo que poderíamos fazer. Ele perguntava a cada um o que é que queria fazer a partir daí. Eu estava casada com um estudante angolano de medicina, o Manuel Boal, que foi no grupo de angolanos que foram para a frente no Congo-Kinshasa, para a criação de uma frente de saúde para apoiar os feridos de guerra de Angola. Eu tinha um bebé de 17 meses. Naquele contexto, não quisemos trazer a bebé. Não sabíamos para onde íamos, o que é que ia acontecer. Foi realmente o momento mais duro, ter que separar-me da bebé. Então mandei a minha filha para a minha mãe, que vivia no Tarrafal, e nós fomos. Do Gana fomos para Conacri, onde estava a base do PAIGC. E de lá eu preferi ir para o Senegal para poder ter contacto com a família. Fiquei integrada no PAIGC, a trabalhar no "bureau" do partido. DW África: E no Senegal trabalhava na mobilização de cabo-verdianos para o PAIGC? LB: Sim. Muitas vezes, o Pedro Pires e eu saíamos naqueles autocarros para contactar a comunidade cabo-verdiana. Não falávamos com muitas pessoas, mas, mesmo assim, discutíamos a situação do país naquele momento e aquela onda de independências que estávamos a viver - no Senegal, na Guiné-Conacri, no Gana, na Costa do Marfim. Discutíamos a possibilidade de também nós conseguirmos lutar para conseguir a independência de Cabo Verde. Mas, no "bureau", eu também trabalhava na administração de finanças e contactava com os feridos de guerra que vinham do norte da Guiné-Bissau, através de Ziguinchor. Tínhamos um lar dos combatentes, onde eles ficavam alojados. E, estando aí, em contacto com a minha filha - porque mais tarde a minha mãe conseguiu ir até ao Senegal levar-ma, mas nessa altura ela já tinha cinco anos – eu fazia esse trabalho de educação no Senegal e em Conacri. A Escola-Piloto foi criada depois do Congresso de Cassacá [em 1964]. No entanto, como eu estava preocupada com o problema da minha filha, só em 1969 assumi a direção da Escola-Piloto em Conacri. DW África: Que era uma escola fundada por Amílcar Cabral a pensar na formação de quadros que viriam a conduzir os destinos da Guiné-Bissau e de Cabo Verde quando estes fossem independentes. LB: Uma das grandes decisões desse congresso foi realmente a criação de uma escola que pudesse receber os órfãos de guerra e os filhos dos combatentes com o objetivo de dar uma formação já virada para a criação do tal "homem novo" de que falava Amílcar Cabral. DW África: E o que era mais importante ensinar aos alunos? LB: Ensinávamos Português e depois introduzimos também o Francês e o Inglês. Íamos até à sexta classe, mas os alunos mais avançados tiveram realmente muitas facilidades quando foram estudar para o estrangeiro. Porque nós conseguimos bolsas para a formação deles a partir da sexta classe. Mandámos alunos para Cuba, para a então União Soviética, para a Alemanha Democrática, para a Checoslováquia. E dávamos também História, a nossa História. Os manuais que nós elaborávamos eram virados para a Geografia e a História da Guiné e Cabo Verde. DW África: Em apenas dez anos, o PAIGC formou mais quadros do que o regime colonial em 500 anos. A "arma da teoria" era tão ou mais importante que a luta armada? LB: Sim, a preocupação de Cabral era essa. Ele dizia-me mesmo: "Se eu pudesse, fazia uma luta só com livros, sem armas." Era a melhor maneira de preparar os quadros para o futuro. E, dentro da escola, havia realmente uma relação estreita entre professores e alunos, de respeito mútuo. Isso continuou até hoje. Quando encontro um antigo aluno da Escola-Piloto é sempre um momento gratificante. DW África: As zonas libertadas foram visitadas por vários grupos, por exemplo de jovens. Como foram as reações a esta sociedade sui generis, a este modelo único que encontraram na Guiné? LB: Ficavam encantadas. Nas zonas libertadas, a comunidade era unida e recebia bem os visitantes. As pessoas eram de uma gentileza fora de série. Quando eu me levantava de manhã já havia um balde de água ao sol para aquecer para eu não tomar banho com água fria. Foram coisas que me marcaram. DW África: Há algum episódio durante a luta de libertação nacional que a tenha marcado em especial? LB: Há um que conto sempre porque me marcou. Naquela saída de Paris para a Alemanha íamos em autocarros. E nós saímos de Portugal apenas com um saquinho de cinco quilos. Na altura, como era uma saída clandestina, não tínhamos a hora exata da saída de autocarro. Então, eu saí para ver umas montras. Quando voltei, os camaradas já estavam no autocarro. E eu procuro o meu saco. "Onde é que está o meu saco?" Disseram-me: "O Pedro [Pires] é que levou". Porque o camarada Pires, pensando que uma senhora precisa mais de um saco do que um homem, deixou o saco dele e levou o meu. Para mim, isso é a prova do altruísmo do Pires que me marcou. DW África: E como foi o dia em que soube da Revolução dos Cravos em Portugal, a 25 de Abril de 1974? Como é que recebeu essa notícia? LB: Foi uma coisa que parecia pólvora. Quando soubemos dessa revolução, eu entrava numa sala de aula e dizia: "revolução em Portugal!" Era como se tivéssemos acendido um fósforo. Toda a sala se levantava! Passei de turma em turma a informar dessa revolução. Eu sinceramente não estava à espera daquilo naquele momento e certamente os alunos também não. Isso foi uma das coisas que me marcou. Outra foi quando, após esse período, os militares começaram a deitar abaixo aviões portugueses. Cada vez que tínhamos informação de aviões que tinham ido abaixo, eu ia também às salas de aula e os alunos pintavam logo um avião e uma maca com feridos de guerra a serem transportados. Outro momento que me marcou foi quando a Titina Silá [guerrilheira do PAIGC], que vinha de Ziguinchor para vir assistir às cerimónias fúnebres de Amílcar Cabral, morreu ao atravessar o rio. Quando me contaram que a Titina tinha morrido eu não queria acreditar. DW África: E quase 40 anos depois da proclamação da independência de Cabo Verde a luta valeu a pena? LB: Se valeu! Porque eu que conheci um Cabo Verde em que eu, para fazer o liceu, tive de ir a São Vicente, porque não havia um único liceu em Santiago. Agora eu vou ao Tarrafal e vejo o liceu com todas as condições que tem agora, vejo os jovens frequentando o liceu, com uniforme, com uma cantina. Tive muita sorte. Primeiro, pela oportunidade de ter participado nessa caminhada. E, segundo, por ter chegado ao fim com vida para ver o que estou a ver agora. Valeu a pena.
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"Fui um negociador astuto", considera Pedro Pires
Em 1974, Pedro Pires liderou a delegação que negociou com ...
Em 1974, Pedro Pires liderou a delegação que negociou com Portugal o reconhecimento da independência da Guiné-Bissau e depois de Cabo Verde. O PAIGC era o movimento de libertação "legítimo", sublinha o antigo Presidente. Natural de São Filipe, na ilha do Fogo, Pedro Pires é um dos mais conhecidos combatentes da luta pela independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde. Foi o responsável pela logística da tomada do quartel português de Guiledje, a 25 de maio de 1973, considerada um dos principais momentos da história da libertação da Guiné-Bissau. Em 1974, Pedro Pires liderou a delegação do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAICG) que negociou com o Governo português o reconhecimento da independência da Guiné-Bissau e posteriormente de Cabo Verde. Hoje, aos 80 anos, diz ter sido um "negociador astuto". O arquipélago passa a ser independente a 5 de julho de 1975, já depois da declaração unilateral da independência da Guiné-Bissau, a 24 de setembro de 1973, que Portugal só reconheceu a 10 de setembro de 1974. Pedro Pires foi primeiro-ministro entre 1975 e 1991 e duas vezes Presidente da República (2001-2011). Foi galardoado com o Prémio Mo Ibrahim de boa governação em 2011. Além de presidente da Fundação Amílcar Cabral, atualmente lidera também o Instituto Pedro Pires. Nesta entrevista à DW África, o antigo chefe de Estado começa por recordar os tempos em que aderiu à luta de libertação nacional. DW África: Estudou em Portugal, onde frequentava a Casa dos Estudantes do Império. Conheceu aqui Amílcar Cabral e outros futuros dirigentes de movimentos independentistas. Foi aqui que despertou verdadeiramente para a política? Pedro Pires (PP): Sim, mais ou menos. Com o tempo, com o relacionamento e com os estudos, geralmente evoluímos. Evoluí aí para a política e para a opção de integrar o movimento de libertação da altura, o PAIGC. DW África: Na altura estava impressionado com o pensamento político de Gandhi e chegou a pensar que a luta armada não era necessária. Como é que se convenceu que era preciso pegar em armas? PP: Não era que a luta armada não fosse necessária. A ideia era que podíamos utilizar outros métodos sem ter de recorrer à violência armada. Eu estava convencido que isso era possível. Tinha lido algumas coisas sobre resistência passiva, sobre desobediência civil. Pensei que se podia utilizar esse método pacífico. Mas com o tempo mudei de opinião ao ver o que se passava à nossa volta e assumi a necessidade de participar naquilo a que podíamos chamar a luta armada de libertação nacional ou violência armada. DW África: Depois desertou do exército português e fugiu para Paris em junho de 1961, juntamente com outros estudantes africanos, e começa a agir na clandestinidade. Como era viver assim? PP: Na verdade, nós já agíamos clandestinamente, mas não de uma forma organizada em Portugal. Uns em Lisboa, outros em Coimbra e noutras cidades portuguesas. Mas a fuga para Paris permitiu-me entrar em contato direto com o PAIGC e, dois ou três meses depois, a minha incorporação real nas estruturas do movimento. O nosso grupo era bastante grande, à volta de 60 jovens, rapazes e raparigas. DW África: E depois esteve no Senegal, onde trabalhou na mobilização de emigrantes cabo-verdianos. PP: Era importante a participação dos cabo-verdianos da diáspora ou das comunidades cabo-verdianas, não só no Senegal, mas também nos Estados Unidos da América, em França, na Holanda e noutros países europeus. Nós íamos trabalhar onde havia maiores possibilidades de sucesso e onde corríamos menos riscos. O Senegal era um país africano próximo de Cabo Verde - estamos a cerca de 500 quilómetros de distância -, de modo que havia comunicação. DW África: Depois de quase dois anos de preparação em Cuba, estava previsto o desembarque de um grupo de guerrilheiros que comandaria, mas com a morte de Che Guevara, na Bolívia, o plano é cancelado. Hoje, reconhece que esta era uma "operação suicida", para usar as suas próprias palavras? Era algo utópico? PP: Seria extremamente complicado. O importante é que abandonámos esse projeto por razões várias, entre as quais a sua dificuldade, mas também a dificuldade de conseguir os meios necessários para o concretizar. De toda a maneira, seria um projeto extremamente complicado e difícil, que podia até estar condenado ao insucesso. Mas mesmo que fosse condenado ao insucesso teríamos lançado as sementes à terra e, no futuro, colheríamos certamente os frutos a que aspirávamos. DW África: A não concretização da luta armada em Cabo Verde gerou frustração entre muitos militantes e entre muitos cabo-verdianos havia o sentimento de que a direção do PAIGC concentrava os esforços sobretudo na Guiné-Bissau e que Cabo Verde estava, de certo modo, sem rumo. Como lidavam com esta situação? PP: Olhe que eu sou cabo-verdiano e sempre agi como tal. Mas nós temos de ser realistas, pragmáticos, e estabelecer os nossos objetivos de acordo com a possibilidade que nós temos de os concretizar. Não de acordo com os nossos sentimentos ou afetos. O fundamental era criar as condições para que, mais tarde, pudéssemos atingir esse objetivo. Portanto, aqueles que pudessem defender outra ideia agiam na base da emoção e não na base da razão. Eu, pessoalmente, procurei sempre agir na base da razão. Foi na base da razão que investi todo o meu saber, toda a minha capacidade no triunfo da luta de libertação na Guiné, convencido de que estava também a contribuir para a libertação de Cabo Verde. DW África: Diz-se que dos combatentes cabo-verdianos era aquele que mais se aproximava de Amílcar Cabral. PP: Amílcar Cabral era uma fonte de inspiração. Por outro lado, era o nosso líder, com o qual tínhamos relações de cumplicidade, de lealdade, de amizade, mas também de obediência, porque ele era o nosso dirigente. Em relação à sua pessoa, fui sempre um amigo, acho que bastante sincero, e ao mesmo tempo procurei aprender muito com ele e ser coerente quanto aos objetivos que o PAIGC tinha, e que Amílcar Cabral tinha, em relação ao futuro dos nossos países e da humanidade em geral. Amílcar Cabral era um humanista, mas não era uma pessoa centrada na África, na Guiné ou em Cabo Verde. Tinha uma visão muito mais ampla da luta dos homens e das mulheres, da humanidade, por um mundo melhor, mais seguro - pacífico, mas também mais equitativo. Foi nessa base que houve coincidência, ou pelo menos convergência, entre a nossa forma de estar e os objetivos que nós mesmo estabelecemos na nossa vida. DW África: Como é que lidou com a morte de Amílcar Cabral? PP: Foi uma fatalidade infeliz, penosa, difícil... Tinha-se consumado a morte, o desaparecimento dele. O fundamental era mantermo-nos leais, fiéis àquilo ao nosso compromisso com ele, ao nosso compromisso de emancipação e de independência. Apesar da ausência, inspirámo-nos nele, na sua perspetiva. E inspirámo-nos muito no seu sacrifício. Porque a sua morte é o preço máximo que ele pagou pelos seus ideais e pela independência dos nossos países. A mim competia-me tão somente procurar levar até ao fim esse compromisso que tínhamos entre nós e com os nossos povos. A minha decisão era de fidelidade a esse combate e aos interesses maiores dos nossos povos. DW África: A tomada do quartel de Guiledje, a 25 de maio de 1973, já depois da morte de Amílcar Cabral, é considerada um dos principais momentos da história da libertação da Guiné. Nessa altura era o responsável pela logística da operação. Como é que viveu esse dia? PP: A tomada de Guiledje foi importante pela sua posição estratégica. Ficou aberto o caminho para a entrada das nossas forças, dos nossos meios mecânicos, no sul da Guiné. É preciso ter em conta que essa operação estava a ser preparada há muito tempo, ainda quando Amílcar Cabral estava vivo. Já tínhamos avançado com as ideias e também com as operações de reconhecimento. Saber o que íamos fazer e como íamos fazer. Depois disso aconteceu um facto que apoiou, ou veio a nosso favor, que é a entrada em ação dos foguetes antiaéreos portáteis, os SAM II, que nós na nossa linguagem na Guiné chamávamos Strela. Com a entrada em ação no campo militar desses foguetes Strela criámos as condições para que a operação Guiledje fosse um sucesso. Mas tenhamos em conta que também houve operações com êxito no norte da Guiné, como Gidaje e outras. Foi um envolvimento maior do que Guiledje. No entanto, Guiledje teve um valor estratégico muito maior, teve um impacto maior e um efeito desmoralizador no seio das forças armadas portuguesas muito maior. DW África: Antes do 25 de Abril de 1974 em Portugal, o PAIGC já tinha reforçado os ataques aos quartéis lusos. Portanto, a Revolução dos Cravos não foi uma completa surpresa para o movimento? PP: Para além do conhecimento da nossa própria situação, nós acompanhámos a situação do nosso inimigo, como é que estava do ponto de vista operacional, mas também do ponto de vista moral. Houve sinais percetíveis de que podia haver uma mudança. Um foi o próprio livro do general Spínola, "Portugal e o Futuro". Essa reflexão, dele e certamente de outros que estavam próximos dele, sobre o futuro de Portugal dava-nos a entender que as autoridades portuguesas e alguns portugueses estavam a pensar numa saída para a guerra colonial. Mas, mais do que isso, a saída do general Spínola da Guiné - de onde saiu derrotado - e a mudança de algumas chefias militares, sobretudo no seio dos comandos africanos, eram sinais percetíveis de que a situação não era boa para os militares portugueses na Guiné. Por fim, o movimento nas Caldas da Rainha, que aconteceu a 16 de março do mesmo ano, foi outro sinal percetível. Nós estávamos convencidos que alguma coisa estava para acontecer. Creio que nessa altura já se falava no Movimento dos Capitães. Portanto, o 25 de Abril não foi uma completa surpresa. DW África: Em 1974, liderou a delegação do PAIGC que negociou com o Governo português em Londres, Argel e Lisboa o reconhecimento da independência da Guiné-Bissau e posteriormente de Cabo Verde. O processo cabo-verdiano era um dos pontos de divergência nas negociações? PP: Está claro que teria de haver divergências, pontos de vista diferentes e até interesses diferentes. Temos de analisar isso na base de interesses e na base de alguma visão histórica. Creio que as autoridades portuguesas não estariam tão interessadas na independência de Cabo Verde. Foi uma posição inicial que evoluiu depois para a independência de Cabo Verde. DW África: Mas não foi um processo difícil? Almeida Santos, por exemplo, disse que Pedro Pires foi um "negociador duro". PP: Não tanto, não tanto! Acho que terei sido um negociador astuto, inteligente, capaz de manusear os seus argumentos conforme as circunstâncias. Terei sido mais isso do que um negociador duro. Eu, particularmente, tinha aprendido muito, nas negociações, mas também na vida política. Nós temos de negociar, mas também temos de ter em conta que a entidade com a qual negociamos também tem interesses próprios e teremos de ter em boa e devida conta os interesses do nosso interlocutor. E eu sempre procurei fazer isso. DW África: Em junho de 1975 são realizadas eleições em Cabo Verde. Hoje, várias vozes admitem que foi um "grande erro" cometido pelo PAIGC a neutralização ou prisão de eventuais concorrentes. Falo de elementos da UDC (União Democrática de Cabo Verde) e da UPICV (União do Povo das Ilhas de Cabo Verde), alguns dos quais foram até presos no Tarrafal, que foi temporariamente reativado. Acha que teria sido importante para o partido ter sido legitimado democraticamente e não ter apenas a legitimidade histórica? PP: Não, não. Nós representamos a vontade dos cabo-verdianos. Houve muitos movimentos que nasceram depois do 25 de Abril de 1974. Está claro que são coisas fabricadas e, mais do que isso, sem qualquer legitimidade ou trabalho feito para se legitimar. O PAIGC, na verdade, era o movimento de libertação nacional legítimo, legitimado internamente e internacionalmente. Nós, como atores políticos, teríamos de tirar todo o proveito disso e não nos podiam pedir que tivéssemos uma atitude infantil de entregar o poder a quem não fez nada por ele. Portanto, sejamos objetivos, mas também realistas. Foi nessa base que agimos. Muitas pessoas têm análises fantasiosas que não têm em conta a realidade. DW África: Houve algum episódio durante a luta de libertação nacional que o tenha marcado em especial? PP: O assassinato de Amílcar Cabral foi um momento trágico e difícil. A conquista de Guiledje, por exemplo, foi o contrário. Foi uma vitória mobilizadora e inspiradora. A vida é formada por momentos de dor, de sofrimento, mas também de momentos de alegria. Tive tudo isso junto, mas foi tudo isso que nos fez caminhar e nos fez estar hoje aqui. DW África: Fazendo o balanço dos últimos 40 anos, a luta valeu a pena? PP: Tudo o que seja a conquista da liberdade, da dignidade e dos direitos, e particularmente do direito à autodeterminação e independência, vale sempre a pena. Mesmo que tenhamos durante a implementação alguns erros ou deficiências, vale sempre a pena porque o objetivo final é nobre e necessário.
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"Estávamos todos cansados da guerra", lembra Corsino Tolentino
Ex-combatente do PAIGC e responsável pela mobilização de emigrantes cabo-verdianos ...
Ex-combatente do PAIGC e responsável pela mobilização de emigrantes cabo-verdianos na Bélgica, na Holanda e na França, Corsino Tolentino dirigiu a primeira missão do Governo de Cabo Verde independente a Portugal. Natural da ilha de Santo Antão, André Corsino Tolentino foi estudar para Lisboa em 1966. Um ano depois, a Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE) apreendeu-lhe livros no Lar dos Estudantes Ultramarinos. Foi expulso por alegadamente pertencer a uma rede contra a nação portuguesa. Em 1970, Corsino Tolentino passa a dedicar-se inteiramente à luta de libertação nacional como dirigente do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAICG). Regressou a Cabo Verde em 1974. Em agosto de 1975, dirigiu a primeira missão do Governo de Cabo Verde independente a Portugal, quando era secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros. Posteriormente assumiu o cargo de ministro da Educação. Foi diretor da Fundação Calouste Gulbenkian e promotor do Instituto para a África Ocidental (IAO). Atualmente é administrador não executivo da Fundação Amílcar Cabral. DW África: Conseguiu uma bolsa para estudar em Lisboa, onde chega em 1966. Nessa altura, conhece a rede de estudantes africanos que se encontrava em Portugal. É a partir destes contactos que surge a vontade de abraçar o movimento de libertação? Corsino Tolentino (CT): De forma organizada, sim, embora a formação nacionalista tenha começado um pouco antes, já no Liceu Gil Eanes, na Ilha de São Vicente. De qualquer modo, a viagem para Lisboa ou a inserção naquilo que poderíamos hoje chamar de rede de estudantes nacionalistas cabo-verdianos representou um salto qualitativo na medida em que o conhecimento era mais organizado e de melhor qualidade, digamos assim. DW África: Em 1967, um ano depois da sua chegada a Lisboa, a PIDE apreendeu-lhe livros no Lar dos Estudantes Ultramarinos, onde se encontrava alojado. É expulso e fica sem bolsa. O Ministério do Ultramar acusa-o de pertencer a uma rede contra a Nação. Este episódio marcou-o profundamente? CT: Marcou. As visitas da PIDE não abrangiam toda a gente, mas eram muito frequentes. Elas ajudaram muitas vezes a tomar a decisão de romper com o sistema colonial. Porque a PIDE levava sem autorização, de uma maneira despótica mesmo, aquilo que para nós tinha valor, como se fosse uma coisa perfeitamente normal. No meu caso foram os livros, nomeadamente alguns que tinha adquirido em França, que estava a anos-luz de Portugal nos anos 60, pelo menos em termos de democracia formal. Por outro lado, há também aquele aspeto chocante da intrusão no teu espaço, teoricamente privado. Essa visita teve um impacto forte na minha formação e teve consequências imediatas - cortaram a minha fonte de subsistência e expulsaram-me do Lar dos Estudantes Ultramarinos. Há uma situação de rutura que levou, no meu caso, à decisão radical de sair o mais depressa possível do espaço português. Isso significava, naquela altura, sair para nunca mais voltar ao sistema colonial. DW África: E daí seguiu para França, passou pela Suíça até chegar finalmente à Bélgica. Na Universidade de Lovaina encontra uma comunidade de cabo-verdianos e também um grupo de professores que apoiava os estudantes das colónias. Era um ambiente bem mais favorável à luta de libertação? CT: Era. É preciso ver que, na altura, a fronteira de Portugal era nos Pirenéus. Porque havia uma aliança entre Salazar e Franco, que vinha de longe, e fazia com que nós só nos sentíssemos livres de facto depois de passar para o outro lado dos Pirenéus. No ano anterior, eu tinha estado em França e era indescritível a diferença que existia entre essas duas sociedades, porque era o ano de todas as liberdades, pelo menos de todas as contestações, o Maio de 68. É nesse ambiente que saio, é o ambiente do "salto". Uma particularidade que me atraiu muito era que a Universidade de Lovaina reconhecia a comunidade cabo-verdiana como uma nacionalidade. Estávamos lá como cabo-verdianos e não emprestados como portugueses, como era habitual. Isso era muito significativo para nós. Essa comunidade de estudantes já tinha um relação com a comunidade vizinha, principalmente com a França e a Holanda. Havia até um certo intercâmbio cultural entre estes estudantes e os emigrantes daquela região, o que veio a transformar-se depois numa espécie de acordo de cooperação com o Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), que atribuiu aos estudantes cabo-verdianos de Lovaina a responsabilidade de interagir com os emigrantes. O primeiro objetivo era conseguir mobilizar alguns jovens emigrantes cabo-verdianos. Por outro lado, era preciso difundir a mensagem de libertação. Utilizámos várias vezes os emigrantes para trazer mensagens para Cabo Verde. DW África: O que é que era mais difícil na mobilização de emigrantes, sobretudo numa época em que se temia muito o comunismo? CT: Nós éramos terroristas para o regime salazarista, para a ditadura portuguesa, mas éramos também uma espécie de mensageiros do comunismo. E do comunismo no seu pior, daquele comunismo que chega e redistribui tudo o que se tem, desde o mais íntimo. Portanto, havia que desfazer essa ideia, o que era relativamente fácil quando as pessoas conheciam a realidade, os interlocutores. Por exemplo, quando eu falava com as pessoas de ilha de Santo Antão era relativamente fácil desmontar esta propaganda. Para os meus colegas da ilha de Santiago, de São Vicente ou da ilha da Boa Vista era igualmente fácil, mas o encontro tinha de acontecer e a conversa tinha de ocorrer também para que isso fosse possível. DW África: Em 1970 é chamado para se dedicar inteiramente à luta por Amílcar Cabral. Recebeu um bilhete de comboio para ir até Berlim e de onde viajaria de avião até à Guiné-Conacri. Neste seu primeiro contacto com África continental conhece Amílcar Cabral. Como é que foi passar do sonho à realidade? CT: O sonho tornou-se real, por exemplo, quando contactei pela primeira vez com Amílcar Cabral "himself". Pensei: Aqui está o líder, naquela altura, falado em todo o mundo. E quando temos a oportunidade de o encontrar, de dialogar e vermos colegas, alguns que conheci no passado e que reencontro no continente africano, que eu pisava efetivamente pela primeira vez, aí as coisas estão misturadas. É o sonho e a realidade juntos, mas o resto é mais realidade do que sonho. DW África: Recebeu treino militar de infantaria em Madina do Boé, no Leste da Guiné, em 1971, e depois durante um ano esteve na Escola da Marinha em Odessa, que incluía formação prática no Mar Negro. E foi nesta altura que duas tripulações foram treinadas para um eventual desembarque de guerrilheiros em Cabo Verde. Acreditava realmente que algum dia a luta de guerrilha, no sentido clássico, seria possível em Cabo Verde? CT: Eu pertencia provavelmente a uma segunda geração de jovens treinados para um eventual desembarque em Cabo Verde. A primeira tripulação tinha sido formada em Cuba, com grande envolvimento e participação direta de Fidel Castro e de Che Guevara, que viam em Amílcar Cabral e no PAIGC uma espécie de parceiros genuínos daquilo que consideravam o melhor para as Caraíbas e também para a América Latina. Nós éramos militantes do PAIGC, isto é, lutávamos pela independência da Guiné e de Cabo Verde. Penso que em termos de pensamento estratégico, Amílcar Cabral foi realmente ímpar nesta matéria ao ter pensado e batalhado até conseguir formar o PAIGC com guineenses e cabo-verdianos para a libertação desses dois territórios. Porque a coisa teria sido muito diferente e provavelmente muito mais difícil se tivesse tentado ou só a Guiné ou só Cabo Verde. Enfim, a luta desenvolve-se mais na Guiné do que em Cabo Verde e esse também era um ponto de discórdia. DW África: Havia muita frustração aqui em Cabo verde quando o desembarque não se concretizou. Como é que lidavam com essas críticas? CT: Havia frustração dentro do próprio PAIGC e havia frustração na emigração cabo-verdiana. Só depois viemos a saber que, de facto, era muito difícil, em termos militares, sobreviver a um desembarque nas ilhas de Cabo Verde. Era altamente perigoso porque podia haver um relativamente fácil aniquilamento dos guerrilheiros e esse foi um ponto de discórdia entre os teóricos da guerrilha. Houve discórdia entre Amílcar Cabral e Che Guevara na altura, porque Che Guevara defendia o princípio dos focos. Dizia que desde que as pessoas se instalem e tenham armas, munições e o abastecimento garantido do exterior, a guerrilha poderá depois mobilizar a base e avançar. E Cabral defendia que a guerrilha só vinga se emergir da população local. Houve vários treinos e, pouco antes do assassinato de Amílcar Cabral, em 1973, continuava viva a ideia de um provável desembarque em Cabo Verde. Depois, felizmente, não veio a ser necessário, porque entretanto surgiu o 25 de Abril de 1974 que foi resultado desses movimentos todos. Para nós, logo depois do assassinato de Amílcar Cabral, o mais importante era conseguir assegurar a independência da Guiné-Bissau, afirmá-la no plano internacional como território independente, um Estado que foi reconhecido por mais de seis dezenas de Governos e que valeu muito nas negociações entre o novo executivo, legitimado pelo golpe de Abril de 1974, e o PAIGC. DW África: Quando Amílcar Cabral foi assassinado em janeiro de 1973, o que é que sentiu? Sentiu que se podia matar o homem mas não a luta? CT: O assassino de Amílcar Cabral, Inocêncio Kani, tinha sido meu chefe na Marinha. Um certo conflito existente na própria Marinha e a conspiração que atravessava uma boa parte do PAIGC na altura provocaram uma redistribuição dos quadros. A mim coube-me ir trabalhar no CIPM [Centro de Instrução Política e Militar do PAIGC] em Madina do Boé. Portanto, quando Amílcar Cabral é morto, a primeira sensação não foi de dizer: "Esta luta vai até ao fim, vamos conseguir a libertação, vamos conseguir o nosso objetivo máximo." Registei uma espécie de queda no vazio. Era um pouco como dizer: "Como é possível? Isto acabou." Mas é ao mesmo tempo uma interrogação, uma inquietação. Um dos episódios mais marcantes da minha vida foi precisamente esse. Através de múltiplas rádios, da nossa Rádio Libertação, mas também de outras rádios, como a Deutsche Welle, por exemplo, sentíamos formar-se uma espécie de onda de resistência a todo o tipo de desânimo que nos estava a cobrir de certo modo. E é nesse processo que me lembro de ter estado quase estático a observar a formação desta onda, a que eu chamo uma espécie de transformação do desânimo óbvio numa nova energia que acabou por ser irreversível. DW África: Encontrava-se na Bélgica quando se deu o 25 de Abril de 1974 em Portugal. Como é que reagiu à notícia, ficou desconfiado? CT: Fiquei desconfiado porque as primeiras notícias que saíram sobre o 25 de Abril eram confusas. A própria situação era confusa. Mas nós, no PAIGC, tínhamos uma razão especial para estarmos desconfiados porque António de Spínola era o governador da Guiné. A notícia sobre o golpe de 25 de Abril de 1974 está muito ligada à divulgação do livro "Portugal e o Futuro" de António de Spínola. Ele é apresentado nas primeiras notícias como estando à frente ou como sendo um elemento muito importante para esse movimento. Para nós, Spínola era um adversário temível. Ele tinha conseguido, de certo modo, transformar a guerra na Guiné, ganhar algumas vantagens através da política da "Guiné Melhor" e através da africanização das tropas. E tinha uma aversão muito particular em relação aos cabo-verdianos, principalmente os do PAIGC, porque, segundo a análise que fazia, o problema real para ele eram os cabo-verdianos. E se conseguisse separar os cabo-verdianos dos guineenses encontraria muito facilmente uma solução para a Guiné. Portanto, foi-me necessário algum tempo para dizer: Sim, isto foi mesmo para valer. À medida que fomos cruzando informação, fomos desfazendo as dúvidas até sabermos concretamente que era o fim da ditadura. DW África: E em maio de 74 foi para Conacri, que era então o santuário do PAIGC, e depois seguiu para as zonas libertadas. Qual era o ambiente que se vivia nesta altura? CT: Houve uma explosão de alegria. A guerra durou muito tempo, mais de dez anos. Esse cansaço manifestava-se através de conspirações, da desistência de operações, falta de apoio das populações ou através da deserção para o inimigo. Estávamos todos cansados da guerra, quer as tropas coloniais quer a resistência. Por conseguinte, a substituição do poder em Portugal e as declarações seguintes de predisposição para realizar a Descolonização, a Democracia e o Desenvolvimento só podia ser bem-vindas. É neste contexto que o ambiente muda radicalmente. DW África: Visitou Portugal em agosto de 1975 quando se acreditava, nas suas próprias palavras, na "magia dos três D": Descolonizar, Democratizar e Desenvolver. Quatro décadas depois essas ambições foram atingidas? A luta valeu a pena? CT: A luta valeu a pena, não tenho dúvida, primeiro porque conseguimos a descolonização e iniciámos os restantes D. A democratização está em curso, a um ritmo satisfatório, e o desenvolvimento também.
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Sonho de José Fret Lau Chong era ver São Tomé livre da exploração
Foi a violação dos direitos humanos perpetrada pelos colonos portugueses ...
Foi a violação dos direitos humanos perpetrada pelos colonos portugueses nas ilhas são-tomenses durante a exploração das roças de cacau e de café que levou José Fret Lau Chong a abraçar a luta pela independência. José Fret Lau Chong é uma das memórias vivas da luta pela independência de São Tomé e Príncipe, conquistada a 12 julho de 1975. Era ainda um jovem quando se juntou aos nacionalistas são-tomenses que lutavam contra o poder colonial português. Diz que o fez para ver as ilhas livres da exploração. No roteiro pela conquista da soberania nacional, Fret Lau Chong representou o Comité de Libertação de São Tomé e Príncipe (CLSTP) em várias frentes em Portugal, Alemanha e Marrocos. Em entrevista à DW África, o antigo ministro da Informação, Justiça e Trabalho – cargo que ocupou entre 1975 e 1976 – negou, no entanto, que a implantação do regime do partido único no país após a independência tenha sido uma contradição. DW África: Por que motivo ingressou no grupo dos nacionalistas que lutavam pela independência? José Fret Lau Chong (JLC): Eu sou da geração que viveu o 3 de fevereiro de 1953 [massacre de Batepá]. Vi o sofrimento do nosso povo, das nossas mães, dos nossos pais e irmãs a serem humilhados na via pública, mulheres a serem apalpadas, outras esbofeteadas. Se refilassem seriam presas e imediatamente enviadas para Fernão Dias. Tudo isso criou em mim um sentimento de revolta. Eu sabia que para atingir o meu objetivo tinha que conquistar o saber para combater esse regime salazarista, que oprimia os nossos povos não apenas em São Tomé e Príncipe, como também em Angola, Moçambique, etc. DW África: Por que é que optaram pela luta política em São Tomé e Príncipe e não apostaram na luta militar como nas outras colónias portuguesas (Angola, Guiné-Bissau e Moçambique)? JLC: A luta militar era impossível. Primeiro, somos uma ilha isolada. O número da população e a consciência do nosso povo na altura [eram outros entraves]. E como é que se iria arranjar armas? Tinha que se pensar muito bem como isso deveria ser. Mesmo Angola, que lutava clandestinamente, tinha o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) em Luanda e Holden Roberto no Congo. Também eles tiveram que começar do exterior para o interior e arranjar bases mais próximas do país para lutar. DW África: A constituição do Comité de Libertação de São Tomé e Príncipe (CLSTP) na Guiné Equatorial deveu-se a limitações financeiras ou à falta de coesão no seio do grupo de trabalho? JLC: Não. O CLSTP já existia quando foram para a Guiné Equatorial. Em países como a Guiné Equatorial, a Nigéria e o Congo, e mesmo em Portugal, havia núcleos de são-tomenses. E nos lugares onde era possível fazer-se a mobilização sem cair nas garras do inimigo, fazia-se. Na Guiné Equatorial tivemos apoio do primeiro Governo do antigo Presidente Francisco Macias. Era preciso organizar o grupo que ali vivia para que eles pudessem organizar a luta. Tinha que se fazer propaganda para que as pessoas entendessem qual era o objetivo da luta de libertação de São Tomé e Príncipe. DW África: Quase todo o movimento de libertação pela independência de São Tomé e Príncipe deu-se no exílio. Não houve apoio suficiente nas ilhas? JLC: Nós tínhamos colónias são-tomenses por toda a parte. Tinha-se que mobilizar, sobretudo naqueles lugares, para depois fazer com que a luta se desenvolvesse no interior do país. No Congo e na Guiné Equatorial tínhamos essa campanha, em Ponta Negra e em Calabar, por exemplo. Daqueles pontos conseguíamos mandar emissários para contactar a nossa gente aqui no interior. DW África: Qual foi o apoio que tiveram dos países africanos independentes como o Gabão? JLC: O Gabão desempenhou um papel importante na nossa luta de libertação nacional e somos muito agradecidos pelo que o Governo gabonês fez por nós. Quando o CLSTP ganhou estatuto internacional, quando foi reconhecido pela Organização da Unidade Africana (OUA), já tínhamos feito, em Malabo, a transformação do Comité de Libertação em Movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe (MLSTP). Conseguimos então introduzir o MLSTP no Gabão, embora em São Tomé já estivesse como CLSTP. E depois com o MLSTP tudo estava ainda mais facilitado, de maneira que a partir daqui pudemos trabalhar. DW África: A proibição das emissões radiofónicas, a partir de Libreville, sobre os ideais da independência foi um primeiro entrave? JLC: Nunca houve proibição de emissões. O CLSTP na altura era controlado pelo poder, mas aqui é que não deixava entrar as emissões, quer dizer, os portugueses. Quando criámos o MLSTP, as condições já eram um pouco diferentes. E até assinarmos o acordo com os portugueses emitimos sempre daqui. DW África: Lembra-se de algum episódio curioso na luta pela independência? Por exemplo, a composição do Governo? JLC: Depois de assinarmos o acordo em 26 de Novembro de 1974, em que Portugal reconhecia a nossa independência e que tinha já prazos fixados para a formação do Governo de transição e depois a proclamação da independência, é claro que já tínhamos, mais ou menos, a ideia e a figura de quem podia, nesta primeira fase, governar o país. Não se pode dizer que chegou o dia 12 de julho de 1975 e nós não sabíamos quem ia governar. Na altura era apenas um partido e normalmente são [escolhidas] figuras desse partido. DW África: Residiu na Alemanha no período antes da independência. Como é que avalia o posicionamento das duas Alemanhas, Ocidental e Oriental, no processo da luta pela independência contra o movimento colonialista na África lusófona? JLC: Foram dos países que muito ajudaram o regime de Salazar com armas e munições para Portugal fazer a sua guerra colonial. Porquê? Porque tinham interesses. Assim, não havia independência, esses países continuavam a ter bons negócios com Portugal e Portugal continuaria a viver do nosso trabalho, do nosso suor, das nossas lágrimas para o bem do seu povo. Eles estavam do lado do chamado bloco ocidental. Nós, com o advento da OUA, com o nosso trabalho externo, começamos a ganhar simpatia depois de sermos reconhecidos pela OUA. Claro que tivemos apoio dos países que naquela altura já defendiam a independência dos povos das colónias. Lembre-se que a resolução das Nações Unidas de dezembro de 1970 declarava que os povos coloniais deveriam ter a sua autodeterminação e independência. DW África: Quando residia na Alemanha, era responsável pela informação e propaganda do CLSTP. Como é que desempenhava essas funções? JLC: Quando se criou a CLSTP, eu já estava fora de São Tomé. Eu parti em 1954, depois estive em Lisboa, de onde saí em 1959. Estive em França até finais de 1960. Depois consegui chegar à Alemanha e, nessa altura, tivemos informação que daí poderíamos ter bolsas para prosseguir os nossos estudos. Criou-se, então, a União Geral dos Estudantes da África Negra sob Dominação Colonial Portuguesa (UGEAN). Eu representei São Tomé nessa reunião e fui eleito secretário-geral para dirigir por dois anos a organização. Isso dava-me oportunidade de poder fazer parte do MLSTP porque era reconhecido. E embora tivesse a tarefa fundamental da organização no seio estudantil, eu era um quadro considerado pelo CLSTP e informava sobre a nossa luta. Éramos membros de pleno direito. DW África: Pelo desenrolar do processo o senhor acha o país na altura e os nacionalistas estavam preparados para assumir os destinos de são Tomé e Príncipe? JLC: Se nós pensássemos assim, não haveria luta de libertação! Sabíamos que o nosso povo queria ser libertado depois do massacre de 1953 e que deviam recuperar as suas terras que foram roubadas pelos colonos. Sabiam que eram exploradas indiretamente porque só faziam trabalho de empreitada. Nunca aceitaram trabalho forçado. Isso fazia com que transportassem os trabalhadores como gado, de Angola, de Moçambique e mais tarde de Cabo Verde, para aqui. Já havia uma série de condimentos para fazer ferver esta panela. DW África: Na retrospetiva diria que houve erros na nacional dos setores chaves da economia como as roças de cacau e café? JLC: Lembro-me que mesmo depois da independência, quando as coisas começaram a andar mal, dizia-se que se nacionalizou e que não se devia nacionalizar, que o processo foi mal conduzido. Não. Nós estávamos convencidos que deveríamos recuperar aquilo que era nosso. Sabíamos que era vontade do povo e acreditávamos piamente que, mesmo sem ter aqueles quadros, nos podíamos tomar a rédea da nossa economia. Este gesto de nacionalização foi um gesto patriótico. Naquela altura houve colonos, que ocupavam propriedades pequeninas, que as abandonaram com salários em atraso só para nos tramar, porque sabiam que íamos tomar as roças. O que se pode dizer é que talvez não tenhamos tido tempo suficiente para preparar. Naquela altura não tínhamos quadros são-tomenses formados. DW África: Os movimentos pela independência lutaram pelo fim do regime não democrática de Portugal em Africa mas acabaram de instalar regimes monopartidários nos países libertados. Não é uma certa contradição? JLC: Não, não é contradição. Depois de nos tornarmos independentes íamos fazer um regime igual ao de Oliveira Salazar? Para isso não valia a pena lutar. Acomodávamo-nos como os salazaristas. DW África: Lutou-se contra o regime salazarista, mas houve também a instalação do partido único. Isto não é uma contradição para si? JLC: Não é contradição porque naquela altura tinha que ser. Não havia outro partido. Houve um partido que se quis formar depois da nossa independência, chamado Frente Popular Livre. Eles próprios dissolveram-se e juntaram-se ao MLSTP. Alguns dos seus representantes fizeram um trabalho valioso para o país. Depois disso, e se durante a primeira fase da nossa luta começou a haver determinadas tomadas de posição que talvez não fossem as mais corretas, mesmo para a marcha do país, é natural que houvesse gente esclarecida que não podia aceitar isso. Por isso é que se diz que afinal de contas se ia fazer o mesmo que os portugueses fizeram.
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“Há novos colonos em São Tomé” diz Filinto Costa Alegre
Filinto Costa Alegre, um dos fundadores da Associação Cívica Pró-MLSTP, ...
Filinto Costa Alegre, um dos fundadores da Associação Cívica Pró-MLSTP, define-se como "um combatente da liberdade". Foi este o espírito que o motivou a querer servir o país e a libertá-lo do jugo colonial português. Desde muito cedo, Filinto Costa Alegre ouviu e participou, como espectador atento, de pequenos grupos onde se discutia a independência de São Tomé e Príncipe. A sua consciência nacionalista foi-se moldando. Motivado pelos acontecimentos registados um pouco por toda a África, abandona os estudos universitários em Portugal, depois do 25 de Abril de 1974, para formar, juntamente com outros estudantes, a Associação Cívica Pró-MLSTP, a pedido do Movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe (MLSTP). Com a Associação Cívica ajudou o movimento a afirmar-se como legítimo representante dos são-tomenses. Mas antes de 12 de julho de 1975, dia da independência de São Tomé e Príncipe, é expulso com outros colegas e acusado de ações que até hoje refuta. Filinto Costa Alegre consola-se presenciando a independência de Moçambique e de Angola, mas a mágoa continua. DW África: O massacre de 1953 é visto como um marco do surgimento do nacionalismo são-tomense. Até que ponto este massacre foi decisivo para formar uma consciência de libertação em São Tomé e Príncipe? Filinto Costa Alegre (FCA): No processo nacionalista pode-se distinguir vários momentos e entre eles está o pós-1953. Antes disso, na agenda dos nacionalistas o que prevalecia eram reivindicações sociais, mais ou menos igualitárias. Pensava-se que se podia ser português de segunda, ou algo do género, e que se podia reivindicar direitos sociais, melhor trabalho e melhores salários. O massacre de 1953 teve a virtude de deixar claro que havia que separar completamente as águas e lutar pela afirmação de uma identidade que fosse distinta do opressor. A partir daí é que podemos falar de um movimento nacionalista de cariz independentista. DW África: Quando é que decide passar de uma fase mais passiva para uma mais ativa? FCA: O movimento e as ideias nacionalistas eram mais partilhadas pelas pessoas. No terreno, não se passava da fase de mobilização das pessoas ou mobilizava-se apenas um grupo muito restritos. Era um movimento absolutamente fechado. O controlo era muito grande e a repressão bastante feroz. Por isso, enquanto vivemos cá em São Tomé e Príncipe partilhávamos esse conhecimento, buscávamos informações nas rádios que se difundiam naquela altura, como “Angola Combatente”, por exemplo, mas não havia uma exteriorização evidente. Quando partimos para continuar os nossos estudos fora criam-se outras oportunidades de se partilhar essas ideias, de se conhecer outras realidades, conviver com gente que vinha das outras antigas colónias, como Moçambique e Angola. Quando começamos a estudar em Portugal criaram-se novas oportunidades. Foi uma evolução natural. A partir daí começamos a ver as coisas sob outros prismas, a discutir como é que seria possível implantarmos o verdadeiro movimento nacionalista em São Tomé e Príncipe. DW África: E a Associação Cívica Pró-MLSTP surge, então, para fazer no terreno aquilo que o CLSP não conseguia fazer? FCA: Sim. A Associação Cívica Pró-MLSTP é o primeiro movimento nacionalista implantado em São Tomé e Príncipe. Foi algo que criamos depois do 25 de Abril de 1974, em perfeita sintonia com a direção do movimento, que nessa altura se encontrava em Libreville (Gabão). Foi a melhor forma que encontramos, nós os que regressamos ao país, e implementamos estas ideias. Os que estavam fora é que constituíam então a direção do movimento. No fundo, o objetivo era criar um braço legal, uma vez que no começo da democracia portuguesa havia muita confusão em relação ao futuro das colónias e havia ainda uma situação dúbia. O aparelho repressivo estava ainda completamente montado em São Tomé e Príncipe. Portanto, achou-se por bem que nós, como éramos mais jovens e assumíamos riscos muito mais facilmente, poderíamos regressar e dar corpo a essa ideia. E foi o que fizemos. Chegámos, criámos o movimento, fizemos a mobilização. E estou convencido que ninguém negará que terá contribuído quase que decisivamente para que o MLSTP fosse reconhecido pelas autoridades portuguesas como legítimo representante do povo são-tomense para que se negociasse a transição do poder com o MLSTP e se assinasse o Acordo de Argel, que foi a antecâmara da nossa independência. Abriu portas para o Governo de transição que se instalou a 21 de dezembro de 1974 e que previa como data de independência o dia 12 de julho de 1975. DW África: Se existia essa máquina opressora com é que foi possível a Associação Cívica Pró-MLSTP fazer o seu trabalho de mobilização no terreno? FCA: Havia o aparelho montado, mas já não tinha a retaguarda pois a situação já tinha mudado em Portugal e havia uma turbulência muito grande. Mesmo os autores da repressão não estavam tão fortes como seria em outras ocasiões. Nós sabíamos que iríamos enfrentar um poder sério. O que fizemos desde o início foi criar um contra-poder, criar condições para que pudéssemos falar e enfrentar aquilo que estava estabelecido enquanto sistema colonial operante. E atacamos o sistema nas suas bases fundamentais. Fomos inviabilizando o sistema que estava montado. Não deixar que as roças continuassem a produzir para sustentar toda máquina colonial foi uma das nossas preocupações. Outra foi multiplicar os problemas aos colonos a todos os níveis para que eles se dispersassem. DW África: Foi essa não compreensão e voltar aos antigos clichés que causaram a rutura entre a Associação Cívica e o MLTP? FCA: Não. O que houve entre a Associação Cívica e o MLSTP foi uma luta pelo poder. Nós é que fizemos toda a divulgação. Ninguém conhecia, apenas meia dúzia de pessoas tinham ouvido falar de Manuel Pinto da Costa, Miguel Trovoada, esses rapazes que estavam lá fora e que eram os dirigentes do MLSTP. E fomos nós que viemos para aqui e tornámo-los pessoas “conhecidas” pois fizemos toda a propaganda para eles. E, no fundo, as pessoas só nos conheciam a nós e por interposição nossa é que conheciam os outros. Tinha chegado mais ou menos o momento deles entrarem no país e começaram a surgir algumas fricções sobre o que se devia fazer ou não. Como nesse processo de independência tínhamos criado muitos inimigos, porque fizemos calar muitos grupos que tinham ideias de federalismo e associação com Portugal e fizemos com que todos só falassem da independência, essa gente estava à espera de uma revanche para se virar contra nós. E a direção o MLTSP de então se tinha uma grande astúcia era precisamente na gestão desses problemas. Associaram-se ao poder colonial e a outros indivíduos descontentes para se verem livres de nós e não partilharem o poder que eles pensavam que nós queríamos. Foi uma luta pelo poder e nada mais do que isso. DW África: Mas nunca houve, da vossa parte, vontade de subir ao poder? FCA: Eu só posso falar por mim e por mais alguns e o que prevalecia para nós era a vontade de servir o nosso país, a nossa causa. Quando viemos e criámos a Associação Cívica ainda não tínhamos recursos. Éramos cerca de 20 jovens a estudar em universidades portuguesas. Como não havia dinheiro, dez foram dar aulas no liceu e outros dez ficaram totalmente virados para a mobilização política. No final do mês, os dez que foram dar aulas traziam o seu salário e distribuíamos entre os 20 igualmente. Não estávamos preocupados com essas questões que nos imputavam. Nunca pensamos tirar vantagens da situação. Quando criamos a Associação Cívica nós é que comandávamos em São Tomé e Príncipe. Até mesmo o alto-comissário muitas vezes quando queria fazer algo tinha que chegar a um acordo com a Cívica. DW África: Depois de todo o trabalho de mobilização que tiveram, qual foi o sentimento ao estarem longe do país no dia 12 de julho de 1975? FCA: Foi muito doloroso. Todos nós vamos morrer com essa mágoa. Mas eu assisti à proclamação da independência de Angola e de Moçambique. Era uma espécie de compensação. Quando Samora Machel declarou a independência de Moçambique no Estádio da Machava estávamos presentes. Quando Agostinho Neto proclamou a independência de Angola, na Praça Primeiro de Maio, também estávamos lá. Foi uma espécie de compensação por não termos assistido à independência do nosso país. Foi triste, vivemos com essa mágoa, mas está ultrapassado. DW África: Essa saída foi um tanto ou quanto forçada... FCA: Forçada, não. Fomos expulsos de São Tomé e Príncipe pelos dirigentes de então do MLSTP, pela polícia, pelos militares e por todo o aparato repressivo. Tínhamos que sair porque eles montaram um sistema em que passamos a ser identificados como inimigos disso e daquilo. Tão simples quanto isso. Nós, os que tínhamos vindo de fora, fomos todos expulsos. Mas alguns regressaram pouco tempo depois, pois decidiram alinhar-se no MLSTP. Vieram e prestaram vassalagem aos dirigentes se então, foram aceites e integrados e continuaram no MLSTP. Alguns de nós, que nunca aceitamos assumir culpas que não tínhamos, ficamos excluídos até encontramos o nosso próprio caminho. DW África: Hoje voltaria a fazer tudo o que fez e do mesmo jeito que quando assumiu a Associação Cívica Pró-MLSTP? FCA: Não há a mínima dúvida disso porque eu até agora considero-me um combatente da liberdade. Não sei se o país estará mais liberto do que estava em 1973/74 durante a ocupação colonial. Há novos colonos que estão a colonizar o nosso país, colonos nacionais. E é preciso que nos libertemos desta elite que é muito perniciosa para o país e que tem feito muito mal a este país.
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Massacre de Batepá despertou Leonel Mário d’Alva para a luta independentista
Primeiro-ministro do Governo de transição investido em 1974, Leonel Mário ...
Primeiro-ministro do Governo de transição investido em 1974, Leonel Mário d’Alva foi um dos fundadores do Comité de Libertação de São Tomé e Príncipe. O massacre de 1953 impulsionou a criação da organização política. Leonel Mário d’Alva foi um dos fundadores do Comité de Libertação de São Tomé e Príncipe (CLSTP), juntamente com nomes como Cícero Santiago, Nazaré Mendes, Pedro Rita Vaz de Alcântara, Armindo d’Alva Ribeiro, Junqueira d’Alva, Guadalupe de Ceita e Miguel Trovoada. O massacre de Batepá, como ficou conhecido o massacre ocorrido a 3 de fevereiro de 1953, serviu de elemento impulsionador para a criação desta organização política. A onda de repressão desencadeada pelo então governador Carlos Gorgulho resultou num número indeterminado de mortos. Nacionalista por convicção, Leonel Mário d’Alva e o CLSTP recebiam as influências independentistas que chegavam do continente e preconizavam a independência das ilhas. O Comité era o movimento que funcionava na clandestinamente devido à máquina opressora da PIDE, a polícia política portuguesa. Nesta entrevista à DW África, Leonel Mário d’Alva, que viria a ser primeiro-ministro do Governo de transição, entre 21 de dezembro de 1974 e 12 de julho de 1975, relembra os acontecimentos que estiveram na origem do CLSTP e que culminaram com a independência do país em 1975. DW África: O massacre de 1953 é visto por muitos como o momento cristalizador para o nacionalismo são-tomense. Como é que reagiu a este massacre? Leonel Mário d’Alva (LMD): Quando houve esse massacre, em 1953, eu ainda era estudante do secundário e estava em Angola. Fui informado pelo reitor da escola de que houve um massacre em São Tomé e que morreu muita gente. Entre as vítimas mortais estavam parentes meus. Senti uma dor muito grande. Quando regressei a São Tomé, em 1956, vi que de uma maneira em geral o povo de São Tomé e Príncipe estava muito chocado com o massacre e queria procurar uma alternativa à colonização.Pensamos que para isso era preciso criar uma organização política cujo objetivo principal seria informar o povo da necessidade de nos engajarmos no processo da luta pela independência. Podemos considerar que o massacre de 1953 foi, efetivamente, uma etapa que levou os são-tomenses a terem consciência de que a sua luta não deveria ser apenas pela igualdade dos direitos cívicos, mas também pela independência completa do país. DW África: Quando começa esse movimento de libertação de São Tomé e Príncipe, com o CLSTP, um pouco por toda a África vivia-se um momento de libertação. Chegavam a São Tomé e Príncipe notícias sobre o que acontecia nos outros países? Isso foi um incentivo extra para os são-tomenses almejarem a independência do país? LMD: Ainda me recordo que quando o Gana se tornou independente, em 1957, Kwame Nkrumah, que era o Presidente naquela altura, fez uma declaração dizendo que o Gana não se consideraria independente enquanto os outros países africanos não fossem independentes. Isso foi uma das coisas que me entusiasmou muito. E disse para mim próprio: Se o Gana se tornou independente porque que é que nós não? Houve muitos acontecimentos em África. Por exemplo, em Conacri, quando o general Charles de Gaulle perguntou aos antigos países que eram colonizados pela França se queriam a independência ou se preferiam ficar na comunidade. Sékou Touré aconselhou a população e o seu partido a votarem contra a comunidade e a preferirem a independência. Isso também nos fez compreender que as coisas estavam a mudar para África e que África estava disposta a assumir, não obstante as dificuldades que teria que atravessar, o seu papel nesse mundo de lutar também pela dignidade dos povos africanos. DW África: Esse movimento, que começa em finais da década de 1950 e princípio de 1960, foi inicialmente um movimento muito restrito, muito fechado, de um certo grupo considerado privilegiado e não um movimento nacional. Considera que foi isso mesmo que aconteceu? LMD: Sim, isso aconteceu devido à natureza do regime. Porque naquele tempo era o regime do Estado Novo. Havia uma ditadura muito forte, uma polícia política muito forte, a PIDE, e também muitos outros tipos de polícia, como a Polícia de Segurança Pública e a Polícia Militar. Naquele tempo não era possível ter um movimento muito amplo porque se as autoridades coloniais soubessem, fariam uma grande repressão. Portanto, o grupo era muito restrito e constituído sobretudo por pessoas de muita confiança. DW África: Como é que foi possível "driblar" essa segurança, esse sistema e criar o CLSTP? LMD: O grupo era clandestino, havia um comité diretivo e este comité estava organizado por células em várias zonas do país. E as pessoas que sabiam o que se passava eram pessoas de muita confiança. Por exemplo, nós não podíamos fazer reuniões em massa para informar, pois naquele tempo considerava-se um crime o querer criar uma organização reivindicando a independência. Naquele tempo também todas as reuniões eram proibidas e quando tinham que acontecer era preciso pedir para fazer as reuniões. Portanto, tinha que ser um grupo muito restrito e um grupo com carácter clandestino. DW África: O CLSTP deixa São Tomé e Príncipe e cria células também no estrangeiro. Muitas da reuniões foram realizadas no Gabão e na Guiné Equatorial. Como é que o CLSTP conseguiu fundar também as suas bases no estrangeiro? LMD: As pessoas iam saindo de São Tomé e Príncipe. Naquela altura as viagens eram feitas sobretudo de barco. Iam para o Gabão, Gana e Guiné Equatorial. Também iam através de Portugal e de França e de lá seguiam para muitos países africanos. DW África: O CLSTP acaba depois por transformar-se no MLSTP. A que se deveu esta mudança? LMD: O CLSTP transformou-se no Movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe (MLSTP) numa conferência feita em Malabo (capital da Guiné-Equatorial), em 1972. Essa transformação ocorreu porque entraram mais elementos e a organização passou de um nível para outro. Portanto, em vez de ser apenas um comité de libertação passou-se ao MLSTP. É necessário frisar que nessa reunião realizada em Malabo houve uma reconciliação entre os diversos grupos, como o CLSTP do Gana e o CLSTP do Gabão. Naquela reunião conseguimos ultrapassar, em certa medida, algumas divergências que vinham nos membros e fundir todos no movimento só que é o MLSTP. DW África: O CLSTP foi muitas vezes um movimento que devido à força repressiva que existia em São Tomé que não estava muito no terreno. Como é que o movimento consegue sair da clandestinidade e passar para a mobilização do povo são-tomense? LMD: O movimento tornou-se muito mais amplo só depois do 25 de Abril de 1974 porque depois da Revolução dos Cravos houve uma mudança radical em Portugal. O regime da ditadura que existia foi deposto pelo movimento do 25 de Abril e esse movimento proclamou o direito de realizar reuniões, o direito às reivindicações. Então, o MLSTP aproveitou esse momento para mandar os seus membros para São Tomé e Príncipe. Nesta fase já se conseguia fazer reuniões abertamente, já se podia reivindicar a independência, já se podia fazer greves. E com esta base conseguiu-se mobilizar muito mais objetivamente a população de São Tomé e Príncipe de modo a que esta pudesse reivindicar a independência nacional. DW África: Apesar de ter um nome parecido com a sua congénere em Angola, o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), em São Tomé e Príncipe, o MLSTP nunca pensou em fazer da luta pela independência uma luta armada. Porquê? LMD: Muitos militantes do CLSTP/MLSTP preconizavam a luta armada, mas a posição que teve mais sucesso foi a luta política. São Tomé e Príncipe é uma pequena ilha com difícil acesso e os países que estão mais próximos não eram muito favoráveis à luta armada. E também não é muito o espírito do são-tomense organizar a luta armada. DW África: Como é que vê o papel que a Associação Cívica Pró-MLSTP teve na luta pela independência de São Tomé e Príncipe? LMD: A Associação Cívica foi uma organização que o MLSTP criou na altura para esclarecer e informar a população sobre a independência de São Tomé e Príncipe para que o povo pudesse reivindicar a sua importância. Essa associação teve um papel importante porque naquela altura os colonos estavam em São Tomé e Príncipe. Sobretudo os que tinham roças estavam armados e estavam dispostos a confrontar toda a reivindicação para a independência. A Associação Cívica participou, juntamente com muito elementos da população, no desarmamento desses colonos que estavam nas roças e também participou, de uma maneira geral, na mobilização. DW África: Houve um momento em que o MLSTP, ao regressar a São Tomé e Príncipe antes da independência, temeu um pouco o poder que a Associação Cívica tinha conseguido terreno e que esse poder e a capacidade de mobilização poderiam, de alguma forma, levá-los ao poder e não os dirigentes do MLSTP para os quais trabalhavam. Acredita que essa tenha sido a realidade em 1974? LMD: Não. Em 1974/75 já tínhamos assinado o Acordo de Argel que estabelecia o esquema, o prazo e as condições para a independência de São Tomé e Príncipe. E o MLSTP achava que se devia respeitar o Acordo de Argel e cumprir os termos, mas não cumprir aquilo que a Associação Cívica preconizava e que não estava no acordo. Por exemplo, a dissolução do exército. Os dirigentes do MLSTP não aceitavam e achavam que deveriam seguir o que estava no Acordo de Argel. DW África: LMD: Então porque que se dá essa ruptura entre a Associação Cívica e o MLSTP? LMD: Por causa disso. Havia condições previstas no Acordo de Argel e pensavam que se deveria implementar aquilo que preconizavam. Daí essa ruptura. DW África: Como é que os são-tomenses receberam a notícia da assinatura do Acordo de Argel a 26 de Novembro de 1974? Era já a confirmação de que a independência estava próxima? LMD: Sim. Quando houve o Acordo de Argel houve uma grande satisfação do povo são-tomense. Nós, os membros do MLSTP da altura - hoje já não faço parte do partido - comunicamos à população sobre o Acordo de Argel. Recebíamos várias comunicações de que as pessoas queriam ouvir o acordo. Pedimos ao Governo gabonês que, através da sua rádio em Libreville, nos deixasse transmitir o acordo na íntegra. As pessoas ficaram muito satisfeitas sabendo que iriam tornar-se independentes e as próprias condições para a independência de São Tomé e Príncipe. DW África: A 12 de julho de 1975, o povo de São Tomé e Príncipe pôde finalmente hastear a sua bandeira e ouvir o hino nacional pela primeira vez. Qual foi o sentimento quando se declarou São Tomé e Príncipe independente? LMD: Depois do Acordo de Argel houve a constituição de um acordo de transição. Esse Governo foi preconizado para ter uma duração de seis meses, durante a qual foi preparada a independência de São Tomé e Príncipe. E no dia da independência houve uma grande satisfação, houve muitos convidados de muitas partes do mundo. Foi efetivamente uma grande festa no dia 12 de julho de 1975. DW África: Passados 39 anos acredita que, apesar de se ter conseguido a independência em 1975, podemos considerar São Tomé e Príncipe um país independente como era preconizado naquela altura? LMD: Hoje em dia nós não podemos dizer que há países completamente independentes. Nós estamos numa fase das relações económicas internacionais de uma grande interdependência. São Tomé e Príncipe tem as suas dificuldades, é muito interdependente, mas julgo que já ultrapassou algumas fases e muitas coisas foram feitas para melhorar as condições de vida do povo são-tomense.
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Rádio Libertação: "Fala o PAIGC"
Criada em 1967, a Rádio Libertação foi crucial para difundir ...
Criada em 1967, a Rádio Libertação foi crucial para difundir os ideais do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC). Amélia Araújo, locutora das emissões em português, era a voz mais conhecida. "Camaradas e ouvintes, atenção: dentro de momentos poderão ouvir a Mensagem de Ano Novo que o nosso secretário-geral, camarada Amílcar Cabral, dirige a todos os camaradas e compatriotas da Guiné e Cabo Verde.” Era assim que, há mais de 41 anos, Amélia Araújo anunciava na Rádio Libertação a Mensagem de Ano Novo de 1973 de Amílcar Cabral, o fundador do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC). A locutora das emissões em português era uma das principais vozes da rádio do PAIGC. Aos microfones da emissora, em Conacri, a angolana de origem cabo-verdiana leu muitos textos de Cabral a denunciar "a política enganosa dos colonialistas portugueses". As primeiras experiências radiofónicas começaram em 1964, com a ajuda do marido, o cabo-verdiano José Araújo, dirigente do PAIGC e responsável pela área de informação. Mas o emissor que tinham "era muito fraco e não chegava convenientemente à Guiné nem a Cabo Verde", conta a locutora. "Foi assim que começámos, com um pequeno emissor russo e um gravador Grundig, velho, a que às vezes tínhamos de dar socos para funcionar! Mas tudo isso era maravilhoso porque conseguíamos fazer as coisas assim mesmo", recorda. Expansão do crioulo Em 1966, Amélia Araújo e quatro companheiros guineenses foram enviados por Amílcar Cabral para uma formação de nove meses na União Soviética. Um ano depois, a Suécia oferece-lhes um emissor e um estúdio. "E a partir daí criamos a Rádio Libertação, já com condições excecionais de trabalho para aquela época", sublinha a voz mais conhecida da Rádio Libertação. As emissões começaram oficialmente no dia 16 de julho de 1967. Inicialmente eram apenas 45 minutos por dia, divididos em períodos de 15 minutos. A programação era variada. Um dos programas que a locutora considerava importante era o programa em crioulo, que todos ou quase todos entendiam. "Porque a luta também serviu para unir linguisticamente todas as etnias da Guiné. O crioulo expandiu-se e toda a gente começou a falar crioulo", conta. Além do crioulo e do português, a rádio também emitia nas línguas balanta, fula, mandinga e beafada. "O meu país é a Madeira!" O "Programa do Soldado Português" era uma das produções mais famosas da Rádio Libertação. Emitido na língua de Camões e com locução de Amélia Araújo, o programa incitava os militares lusos à resistência e à revolta. Era uma espécie de "guerra psicológica" com efeito desmoralizador. "Acho que o programa teve muito impacto no seio do Exército português porque nós chamávamos a atenção para aquela guerra que não era nada deles, que não tinha a ver com eles, que não era da terra deles. Estavam a morrer à toa", lembra. Houve uma altura em que começaram a desertar soldados, "inclusive oficiais", sublinha "Maria Turra", como Amélia Araújo também era conhecida entre os militares portugueses. "Turra" era o termo usado pelos portugueses para designar os guerrilheiros independentistas. A locutora chegou a entrevistar um soldado da Madeira que desertou, a quem perguntou se considerava que aquela guerra era justa."Não acho que seja justa, mas mandaram-me para cá", disse o militar. Amélia Araújo argumenta então que se um país estrangeiro invadisse Portugal, nesse caso ele teria toda a legitimidade de defender o seu país. "O meu país é a Madeira! Não tem nada a ver com Portugal", respondeu o soldado. "Coitado, ele era analfabeto. Era uma pessoa muito simples", explica a locutora. O português também não queria acreditar que Amélia Araújo fosse a famosa "Maria Turra". "Você não vê que não sou portuguesa? Olhe para mim!", respondeu Amélia Araújo. "Comunicado de Guerra" Outra produção de grande impacto da Rádio Libertação era o programa "Comunicado de Guerra". Diariamente, eram anunciados os combates ocorridos nas diversas frentes, as vitórias ou as derrotas de ambos os lados. E também eram divulgadas as listas de soldados lusos mortos que eram publicadas por jornais portugueses. "Éramos três pessoas a ler os nomes. Era eu, o António Mascarenhas, que foi Presidente da República, e o Arnaldo Araújo. Juntávamo-nos os três e líamos alternadamente. Uma lista de dez ou vinte pessoas parecia uma lista de 40", relata a locutora. E isso, acrescenta, "impressionava muito os soldados portugueses e fazia-os pensar sobre o porquê de estarem a morrer ingloriamente." A emissora dava grande destaque aos momentos decisivos do PAIGC. Divulgava o hino do partido, as viagens de Amílcar Cabral, os apoios externos à causa da libertação. E era através da rádio que as mensagens de revolução chegavam ao povo guineense e cabo-verdiano. "A rádio teve um papel importante em relação à luta armada no interior da Guiné. Porque as mensagens chegavam, as várias frentes de combate sabiam o que se passava nesta, naquela ou na outra frente", recorda Amélia Araújo. "Amílcar Cabral até dizia que a Rádio Libertação era o canhão de boca da nossa luta." O fundador do PAIGC era um dos principais colaboradores da emissora do partido. "Locução como deve ser" Na Rádio Libertação também havia espaço para a colaboração dos mais novos. "Blufo" era o programa dirigido a crianças e jovens e tinha como locutores alunos da Escola-Piloto do PAIGC. Entre eles estava a cantora cabo-verdiana Teresa Araújo, filha de Amélia Araújo. Sempre que podia sair do internato, aproveitava a oportunidade para estar com a mãe. A antiga aluna da Escola-Piloto do PAIGC gostava de ver como a mãe tratava das bobines e reparava as fitas. Amélia Araújo também dava uma ajuda à filha e aos colegas com os textos em português. "Mandava-nos ler e fazia as correções necessárias para podermos fazer a locução como deve ser", lembra Teresa Araújo. De dia, Amélia Araújo trabalhava no secretariado do partido. À noite, dedicava-se à rádio. "Dormia muito pouco, mas naquela altura não sentia falta, tal era o entusiasmo!", afirma. A voz da luta Para o ex-ministro cabo-verdiano Carlos Reis, "Amélia Araújo foi uma mulher fundamental para a luta de libertação" nacional. "Era a voz da luta através da Rádio Libertação", diz. "Toda a gente conhecia, tinha de conhecer a Amélia Araújo. Geralmente conhecia-se primeiro a voz e depois é que se conhecia a pessoa", conta o antigo combatente e histórico do PAIGC. O que era então anunciado na rádio continua ainda bem presente na memória da antiga locutora, hoje com 80 anos. "'Esta é a Rádio Libertação, a voz do povo da Guiné e de Cabo Verde em luta'", recorda Amélia Araújo. "Depois havia uma música e eu dizia assim: 'Nós não lutamos contra o povo português. Lutamos sim para libertar a nossa terra do jugo colonial português'."
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Heranças musicais africanas na Europa
Como viviam os africanos e as pessoas de ascendência africana ...
Como viviam os africanos e as pessoas de ascendência africana na Europa, no início do século XX? Que heranças deixaram? Um historiador alemão de jazz reuniu gravações de som e imagens da época em 44 CDs e dois livros. O hino nacional da África do Sul "Nkosi sikelel'i África" (ou "Deus abençoe a África", em português), é um dos símbolos mais conhecidos da independência do continente Africano. Muitas pessoas associam a música ao ano de 1994, quando Nelson Mandela ganhou a eleição para Presidente e selou o fim do racista sistema apartheid. Já na década de 1960, a Tanzânia e a Zâmbia fizeram desta canção seu hino nacional. E a história da música é ainda mais antiga. Uma das gravações tem mais de 90 anos de idade! O ativista dos direitos civis sul-africano Sol Plaatje tocou-a em 1923, em Londres. Já no início do século XIX, pessoas de ascendência africana faziam gravações de som na Europa. Naquela época, a maioria dos países africanos eram colônias de Grã-Bretanha, França, Portugal ou Alemanha. Acervo reúne relíquias Agora, o cientista alemão e historiador do jazz, Rainer Lotz, reuniu os antigos registros. Lotz, de 77 anos, é um ávido fã de jazz e se perguntou: "Como a música americana - ou seja, o blues e o jazz – teve um sucesso fenomenal no mundo? Como foi possível que pessoas de Vladivostok a Buenos Aires rapidamente começassem a tocar jazz e, em parte, também fazer gravações?" Uma resposta está nas novas possibilidades das modernas técnicas de gravação que, naquela época, ainda engatinhavam. Também a liberdade de viajar na Europa no início do século XX, trouxe muitos músicos para a Europa. Lotz recolheu muitas horas de música e gravações de som de 1900 a 1928. O resultado: uma caixa com 44 CDs e dois livros, chamada "Black Europe", ou "Europa Negra". O material inclui gravações de músicos de jazz norte-americanos com raízes africanas, bem como gravações de africanos na Europa. Elas foram feitas numa época em que o microfone ainda não havia sido inventado. As pessoas usaram o primeiro aparelho de gravação de som: o fonógrafo, uma invenção do americano Thomas Edison. Quem quisesse fazer uma gravação, tinha que cantar ou falar em um funil. Uma agulha registrava as ondas sonoras em um cilindro revestido com cera. Estes cilindros de cera são muito sensíveis e devem ser armazenados com muito cuidado, diz a arquivista berlinense Ricarda Kopal. As temperaturas de armazenamento não podem exceder os 20 graus. Por isso, acrescenta, "os cilindros de cera são normalmente armazenados em recipientes de papelão, que são forrados internamente com lã. Assim, eles devem ser armazenados completamente secos para evitar que o mofo se forme." Exposição Universal de 1900 Algumas das gravações mais antigas da coleção são da Exposição Universal de 1900, em Paris. Nela, vários países apresentaram os últimos desenvolvimentos técnicos. O país anfitrião, França, abriu nesta ocasião, a rede subterrânea de metrô de Paris. A França aproveitou também para apresentar as suas colónias. Nas chamadas "aldeias negras", a França colocou os nativos de suas possessões africanas em exposição, que lá deveriam mostrar seu cotidiano. A França trouxe de barco do Madagáscar pessoas para apresentar músicas e danças. Os cientistas registraram os timbres desconhecidos. Em algumas músicas, ouve-se os sons de Valihas malgaxes, uma espécie de cítara típica do país, e uma pequena flauta. "Apenas quatro anos antes, a França havia anexado o Madagáscar, deposto a rainha e montado o seu sistema colonial lá. Esta exposição mundial também serviu para mostrar aos compatriotas franceses e ao mundo: vejam que grande potência colonial somos", revela Rainer Lotz. Africanos em exposição Na Europa, eram frequentes as apresentações que consistiam em mostrar a vida dos africanos. Essas exibições de pessoas foram chamadas de "Völkerschauen", na Alemanha, (ou "zoo humano", em português), explica Lotz. E não sem razão: às vezes, essas pessoas eram presas em gaiolas, como animais. Os organizadores geralmente tinham por objetivo apresentar a África como um continente de "selvagens e não-civilizados". Os chamados "europeus civilizados" queriam ver como os africanos viviam em cabanas, vestindo apenas uma tanga. Havia também shows de entretenimento em que os africanos desempenharam um papel importante. Estes atraíam multidões. A etnóloga de Colônia, Marianne Bechhaus-Gerst, explica que "as pessoas tinham gosto em ver o supostamente exótico". Especialmente em tempos em que a Alemanha ainda era muito fechada, "também o erotismo era um aspecto importante, que trazia dinheiro aos organizadores dos 'zoos humanos' e de apresentações de música", diz. Os telespectadores consideravam particularmente exóticos os chamados pigmeus, ou anões. Eles despertavam o interesse de pesquisadores e homens de negócios. Assim, o coronel britânico James Harrison trouxe, em 1905, seis pessoas da região congolesa de Ituri para Londres. Os quatro homens - Matuko, Mafutamengi, Mongonga e Chief Bokani - e duas mulheres - Kuaki e Omariapi - provavelmente pertenciam ao grupo étnico do Aka. Harrison falavam simplesmente de pigmeus. Ele trouxe os congoleses ao palco do hipódromo de Londres – num cenário de cabanas de palha. É bem possível que ele tentasse, assim, demonstrar uma suposta inferioridade dos africanos perante a civilização ocidental. Harrison foi considerado um apoiador do rei belga Leopoldo, que havia declarado o Congo a sua propriedade privada e explorado impiedosamente a população local. Os timbres do Aka As músicas do grupo étnico Aka são muito complexas. Algumas gravações do ano de 1905 foram obtidas. Elas provavelmente surgiram como souvenirs para os convidados das exposições. Uma delas tem 109 anos de idade. É, assim, provavelmente a mais antiga gravação comercial de africanos na Europa. Nos dois anos e meio que o chefe Bokani e seus compatriotas passaram na Inglaterra, eles se apresentaram diante de mais de um milhão de pessoas provavelmente. Negociantes como o coronel Harrison, mas também africanos e afro-americanos se beneficiaram de tais manifestações, enfatiza a etnóloga Marianne Bechhaus-Gerst. Não só se apresentavam por toda a Europa: era uma oportunidade de ganhar dinheiro, garante. "Havia, sim, contratos que deixavam bem claro o que tinham que fazer e o quanto eles deveriam receber por isso. Isto lhes dava um certo poder: se os organizadores não cumprissem os contratos, os contratados entraram em greve", avalia. Houve casos em que os artistas conseguiram prevalecer contra seus empregadores no tribunal, diz Bechhaus-Gerst. O togolês J.C. Bruce e o seu grupo se tornaram autónomos, por exemplo. Durante anos, eles excursionaram pela Europa. Mas os africanos não vinham apenas para os "zoos humanos" ou participações em eventos de música e dança. Josiah Jesse Ransome-Kuti era um clérigo anglicano do estado nigeriano de Ogun. Em 1922, viajou para Londres – tinha na época 67 anos de idade – para gravar músicas eclesiásticas em Yorubá, que compôs para sua igreja. Além disso, ele gravou uma canção popular de composição própria. Ainda hoje, os cristãos nigerianos cantam os corais de Ransome-Kuti. A música deve desempenhar um papel também na vida de seus descendentes: um dos netos de Ransome-Kuti foi o mundialmente famoso saxofonista nigeriano Fela Kuti, o fundador do Afrobeat, um estilo de música funk da década de 1970. Assim, os traços das antigas gravações sempre conduzem os trabalhos recentes. Valor histórico do acervo Graças a Rainer Lotz e ao selo "Bear Family Records", que retrabalhou as antigas gravações e imagens meticulosa e amorosamente, ainda podemos ouví-las - algumas das quais com mais de cem anos de idade. Este é um enorme trabalho de arquivo. A equipe do chefe do selo, Richard Weize, não poupou despesas ou esforços."Eu sempre produzo primeiro um bom produto e só então me pergunto se é possível vendê-lo. Quando entro em um projeto, ele deve ser razoavelmente longe de qualquer realidade", revela Weize que também se surpreendeu com o escopo do projeto. Inicialmente, ele esperava três ou quatro CDs, diz. O resultado foram, no entanto, 44 CDs e dois livros em formato grande. A extensa e diversificada coleção é provavelmente mais uma obra de referência para as bibliotecas do que um produto para um consumidor "normal". Algumas das gravações têm, sobretudo, um valor histórico. Outras também podem ser bem ouvidas um século mais tarde. Em pleno século XXI, o pedido da bênção de Deus para a África, feito pelo ativista sul-africano dos direitos civis, Sol Plaatje, em 1923, ainda não perdeu a atualidade.
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Augusto Pereira da Graça recorda os dias amargos no Tarrafal
O ex-embaixador da Guiné-Bissau na então União Soviética, Augusto Pereira ...
O ex-embaixador da Guiné-Bissau na então União Soviética, Augusto Pereira da Graça, o “Neco”, participou da mobilização de cidadãos para a guerrilha no Leste da Guiné. Nos anos 1960, “Neco” foi vítima da espionagem colonial durante a mobilização. Ficou sete anos no chamado “campo de concentração do Tarrafal”, onde foi torturado na “Holandinha”. Saiu da prisão quando o general português António de Spínola instalou a “Política por uma Guiné melhor” e reintegrou à guerrilha na frente Norte. “Neco” recebeu a reportagem da DW África no condomínio construído aos ex-combatentes na capital guineense. Ele mora em um dos 130 apartamentos construídos durante a administração do ex-Presidente Kumba Ialá. DW África: Pode lembrar os seus dias no Tarrafal? Augusto Pereira Graça (APG): Foram amargos. Foram dias dolorosos porque lá as refeições oferecidas continham arroz e óleo de palma podres. O óleo de palma não servia nem para fazer sabão. Para lavar a roupa e tomar banho, tínhamos direito a dez litros de água. O comportamento disciplinar era muito rigoroso. Bastava uma falha nas correspondências com os carcereiros que eram brutalmente castigados. Havia celas normais e uma outra “disciplinar”. As pessoas iam para lá para ficar uma semana a pão e água – consumido de dois em dois dias. Havia uma outra cela ainda mais perigosa, chamada “Holandinha” ou “Frigideira”. Os prisioneiros iam para lá para saírem mortos. Cá fora, quando era três horas da tarde, já era noite naquele cubo. Não havia torturas físicas, mas psicológicas para ver se reduziam a nossa resistência e determinação em continuar a luta pela nossa liberdade definitiva. DW África: O senhor foi para a “Holandinha”? APG: A “Holandinha” servia para o castigo mais severo. Eu fui parar lá como acusado de liderar um protesto dentro da prisão contra o alimento que nos forneciam, que não dava para nada. Não poderíamos mesmo saborear este alimento. Então o diretor entendeu que eu estava a criar uma subversão dentro do campo. Saiu um despacho que me dava um castigo de 15 horas nesta “Holandinha”. Eu não sei dizer qual é a temperatura dentro deste cubo, mas o indivíduo entra para lá e, depois de cinco minutos, parecia que lhe tinham dado um banho. Era um calor insuportável. Pode-se dizer um “calor infernal”. Passei 15 horas ali, mas parecia que tinham sido 15 anos. DW África: Quando o senhor foi preso havia sinais de que o senhor estava combatendo? APG: Nesta altura, ainda não havia armas. Usávamos apenas pistolas que eram distribuídas aos militantes clandestinos. Quer dizer, as pessoas que eram indicadas como responsáveis recebiam uma pistola para defesa. Quando me aprisionaram, não me encontraram com nada. Chegava de uma reunião a 40 quilómetros de Gabu. Era uma reunião política, de mobilização para a adesão à luta de libertação. Era necessário despertar primeiro a consciência patriótica para as pessoas aderirem à luta. Queríamos que a nossa luta fosse política, que a nossa independência fosse dada pacificamente. Depois, concluiu-se, no entanto, que isto não seria possível. Salazar dizia que a Guiné era a “filha primogénita” de Portugal, que tinha sido conquistada com sangue. DW África: Como era abordagem das pessoas nas tabancas? APG: Primeiro, procurava-se saber quem eram as pessoas influentes na tabanca. Explicávamos a estas pessoas os castigos e trabalhos forçados aos quais a população estava sendo submetida. Era quase como se vivêssemos em uma situação de escravatura e chegava a hora de nos libertarmos destes trabalhos forçados. Nesta conversa conseguia-se a aderência à luta política. Mas neste período não se sabia quem era da PIDE e quem não era. Então, falava-se com quem quer que fosse e muitas vezes falávamos com um indivíduo que pertencia à PIDE. Mas, nesta altura, como a PIDE não tinha autorização de lançar uma ofensiva prisional, eles tomavam o nome das pessoas que iam para as tabancas fazer a mobilização. Assim, na madrugada de 13 de março de 1962, a tropa colonial portuguesa lançou uma operação militar que resultou na prisão do presidente do partido Rafael Barbosa. Foi uma prisão em massa que acabou resultando na nossa prisão também no dia 17. DW África: O senhor vive hoje em um condomínio para ex-combatentes em Bissau. APG: O condomínio é um monumento de reconhecimento dos nossos sacrifícios. O governo entendeu que deveria começar a ter uma atitude de reconhecimento aos combatentes. Mandaram construir estes prédios, mas o número dos combatentes instalados aqui é muito inferior ao de combatentes que não estão aqui instalados. Muito embora o governo defendesse que as construções continuariam até que todos os combatentes fossem todos dignamente instalados. DW África: Então, este condomínio é uma vitória. APG: Em parte. Seria uma vitória completa se todos os combatentes estivessem dignamente instalados. Nem todos estão instalados devido às dificuldades que os sucessivos governos enfrentavam. Somos milhares de combatentes da pátria. Instalar todos de uma vez é muito difícil. Isto tem que ser feito paulatinamente. Conforme a disponibilidade financeira do governo, vai-se satisfazendo às necessidades dos combatentes. Não há apartamentos para todos. Fez-se uma espécie de sorteio para acomodar as famílias que estão aqui e os outros aguardam a sua vez.